quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Sessão de Contos (6)

Diferente da Sessão da Tarde, um programa quase diário que exibe filmes na televisão, a Sessão de Contos pretende ser um "programa" quase semanal do nosso blog, trazendo para todos os internautas um dos contos lidos nas reuniões de sábado do Clube.

Esta semana exibiremos um conto de Alfredo Albuquerque, lido no 1.º Luau do Clube do Conto, onde os personagens são os participantes do Clube, a ideia era que cada um interpretasse a sua fala.

***

Luau

O vento uiva tenebroso. O mar repousa majestoso e negro sob a lua quase nova. As ondas chiam delicadamente. A noite chega a seu ponto divisor. O bip de um relógio digital de pulso agride o silêncio.

Ana Virgínia, apoiada no colo de Bonifácio, estreita o abraço e fecha os olhos. A brisa joga-lhe os cabelos sobre o rosto. Bonifácio sussurra em seus ouvidos.

_ Já deu meia noite.

Faz-se silêncio. Então Virgínia indaga.

_ Estou com uma intuição de que o encontro de hoje será diferente. Há algo no ar que só as mulheres percebem. Será que Ela vai aparecer?

_ Ela sempre aparece.

Poucos metros à frente, Laudelino acende uma lanterna. Aponta na direção de Emerson, que luta uma batalha exaustiva contra o implacável vento que tenta apagar seu cigarro. Atingido pela luz, seu rosto adquire um aspecto de fantasma, reforçado pelas distorções de expressão causadas pelo esforço em puxar o difícil trago. Reclama da lanterna.

_ Rapaz, tira essa luz do meu rosto, que está incomodando.

Laudelino aponta para outro lado e encontra Ronaldo, deitado na areia, com os olhos fixos em algum ponto do céu absurdamente estrelado. Parece balbuciar algo para si mesmo enquanto risca no ar linhas que, supõe-se, sejam reproduções das constelações. Laudelino intervém.

_ Descobriu um novo anel em Saturno?

_ Não, mas é possível numa noite como essa, em que o céu está pontilhado de estrelas antigas, estabelecer uma relação entre os arquétipos humanos e pequenos grupos constelacionais. O escorpião, por exemplo, pode ser dividido em três partes, onde podemos discernir as formas do político canalha, da estrela da mídia de entretenimento e do mau poeta.

Dôra Limeira, um pouco afastada do grupo, tenta localizar, no céu, as formações estrelares correspondentes às linhas traçadas por Ronaldo no ar. Roberto a chama.

_ Junte-se a nós, Dôra. Conte-nos novamente o que se sabe a respeito da história dEla.

_ Não quero ficar num círculo. Me agrada mais a estabilidade das formas retangulares, onde tudo se apoia na segurança de uma base firme. Círculos são traiçoeiros e pendem imprevisivelmente para lados inesperados.

_ Podemos nos redistribuir nas arestas de um quadrado, com a vantagem de termos um centro para quem gosta deles e quatro cantos para quem prefere a discrição dos cantos.

Dôra cede e se integra.

_ Diz a lenda que Ela foi afogada pelo noivo após descobrir uma traição. Toda terça à tarde Ela simulava ir ao psicólogo e se encontrava com outro homem em um hotel do centro histórico. Correm boatos de que o casal, ao fazer amor, emitia sons estranhíssimos, como os de gatos no cio. A falta de discrição chamou a atenção de outros frequentadores do hotel e, certo dia, a moça foi reconhecida por um amigo do noivo, cliente de prostitutas baratas. Ao saber da traição o noivo convidou a mulher para ir a Cabo Branco numa noite de domingo, prometendo uma surpresa. Ao chegar à beira do mar, num ponto mais afastado da área de movimento, mostrou-lhe o anel caríssimo, comprado para selar a união eterna. Entraram nus na água e, no primeiro beijo, a moça foi surpreendida pela mão atrevida em sua vagina.

"O que você está fazendo?" - Perguntou ela.

"É a sua aliança. Você vai carregá-la em seu ventre para toda a eternidade."

Regina Behar, ultimamente ausente do grupo e desconhecedora da história, de olhos arregalados pergunta:

_ E o noivo? O que aconteceu a ele depois? Ele foi atrás do amante?

_ Não. Ele deixou um bilhete assumindo o crime e isentando o amante de culpa, dizendo que a traição foi da mulher e não do outro, que nem sequer conhecia. Depois sumiu no mundo. Dizem que tornou-se líder religioso em Moçambique.

_ Que história, hem?

_ É...

E faz-se um longo silêncio.

Emerson dá um trago mal calculado no cigarro e tosse, quebrando o clima de reflexão.

Laudelino lembra-se repentinamente de algo e pergunta para os presentes:

_ Alguém por acaso sabe o resultado do jogo do Sport?

Ninguém responde.

Eli inicia desenhos na areia e, pela concentração que dedica aos detalhes, percebe-se que são desenhos complexos. Faz riscos, ergue montes, cava poços, e depois destrói tudo com as mãos, alisando a areia até planificá-la para novamente recomeçar na nova tela vazia. No meio de uma das obras Roberto estende um canudo retirado do copo plástico de caipirinha. Pergunta.

_ Vai precisar de tubulação?

_ Dessa vez não fiz uma cidade. Estou tentando me lembrar das estampas do vestido que Ela estava usando da última vez. Você se lembra se eram flores?

_ Não... não me lembro. Talvez fossem estrelas do mar.

Raoni também desenha, mas em seu bloco de rascunhos. Faz um retrato de Bonifácio que, por algum motivo, o inspirou a criar um novo personagem para um história em quadrinhos que está desenvolvendo baseada em Alice no País das Maravilhas.

_ Você se importa que eu use seus traços para compor o personagem do coelho filósofo viciado em jogos de computador da década de 80?

_ Sem problema, contando que você mantenha os óculos.

Maria Romarta chega, atrasada.

_ Eu queria pedir mil desculpas pelo minha imperdoável nagligência quanto à pontualidade desse nosso importantíssimo encontro no que se refere ao estreitamento de laços sociais literários e à boa acolhida que devemos à Ela.

André a conforta.

_ Não se preocupe, Romarta, que Ela ainda não apareceu. Inexplicavelmente está atrasada dessa vez.

Luciana, que até então estava em silêncio, concentrada em uma posição impossível da Yoga, sugere:

_ Poderíamos aproveitar que estamos na areia para fazermos uma sessão de alongamento conjugada com um pouco de meditação transcendental e exercícios respiratórios desenvolvidos especialmente para aumentar o desempenho sexual tântrico. Que tal?

Valéria Rezende desaprova.

_ Luciana, se eu me alongar, depois de todo o cansaço de um dia dedicado à reforma de minha casa e à administração de peões, acho que corro o risco de fazer uma postura da qual nunca mais vou conseguir sair. Talvez eu prefira fumar um cigarro.

Viviane, sentada ao lado da irmã, sugere:

_ Eu também acho que prefiro outra coisa. Se vocês quiserem, eu trouxe uma cesta repleta de potes de mousse de chocolate. Seriam para Ela, mas acho que eu comprei uma quantidade exagerada.

_ Pois eu topo a Yoga. - exalta-se Carlos Cartaxo - Será uma excelente oportunidade para a obtenção de novas técnicas que passarei a meu alunos que estão se preparando para encenar uma polêmica peça pseudocontemporânea de cunho socio-filosófico.

André Dias, alheio a tudo e a todos, rabisca um pequeno bloco.

Curioso, Alfredo investiga:

_ Resolveu escrever um conto justamente aqui e a essa hora?

_ Não. É que estou fazendo resenhas dos filmes que comprei daquela locadora de DVDs que fechou recentemente as portas. Vendi meu carro para comprar todo o acervo e agora me comprometi a ver um filme por dia. Hoje de manhã assisti àquele péssimo fime "A dama da água" e agora estou escrevendo sobre ele.

_ Pessoal, - intervém André - estou percebendo uma movimentação na água. Penso que será agora.

Bolhas de sabão sobem das águas escuras de Cabo Branco. Na área da turbulência podem ser vistos sacos plásticos e embalagens de biscoito revirados pela água e expelidos em direção à praia. Dos fones de ouvido de Emerson brota uma música estranha que serve como música de fundo para o espetáculo. Lentamente emerge uma grande bolha que traz dentro de si uma mulher.

Ninguém se assusta. Todos a esperam ansiosos.

Dessa vez Ela está diferente. Sua nudez, antes coberta por plantas aquáticas, agora está explícita. Seu rosto parece mais triste. Ela caminha lentamente até o grupo e senta-se na areia, no centro da roda. Em silêncio, olha para cada um e sorri. Depois espera que, um por um, todos venham até Ela com o presente. Recebe livros de poemas, filmes antigos, uma garrafa de aguardente, enfeites femininos, uma camisa do Sport Club de Recife, uma câmara fotográfica sub-aquática e uma pequena escultura em metal de um jabuti. Em troca, oferece conchas dos mais variados tipos, cada uma com uma pequena pérola embutida. Ao final do ritual Ela se levanta e, para a surpresa de todos, começa a falar.

_ Essa será a última vez que nos veremos. Meu noivo foi morto em Moçambique, na guerra civil e, por isso, estou agora livre de sua maldição. A aliança com a qual ele me presenteou não está mais dentro de mim.

Ao dizer isso, Ela mostra a palma da mão direita. O pequeno aro de metal brilha intensamente e ofusca todos por um momento. Ela deposita o anel na areia e diz:

_ Agora estou livre para amar novamente.

O brilho aumenta. Envolve todos numa cegueira branca. O som dos fones aumenta até um nível insuportável.

Então tudo cessa.

Ela já não está mais lá. O anel despareceu. Tudo, aparentemente, volta à sua calma primordial.

Todos se levantam, como recém acordados de um sono profundo, povoado de sonhos. Caminham em silêncio para longe da praia. Juntam-se novamente, no calçadão, para se despedir. Só então percebem que André Aguiar não voltou.

Alfredo Albuquerque

João Pessoa, 2 de novembro de 2009

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