terça-feira, 20 de maio de 2008

Memórias

O calor infiltrava-se nas ideias. O sol reflectia-se na terra a perder de vista e atacava os corpos indefesos pela única via que restava utilizar: o solo. A camioneta fora lenta: como uma armadilha construída para fazer sofrer.

Depois apearam-se e o calor mostrou-se traiçoeiro.

Pegaram nas mochilas, na tenda para acampar. Indagaram pelo parque de campismo. Teriam de percorrer um descampado, subir por uma rua mais protegida de sombra.

Um trilho interminável.

O casal mostrava-se de mau humor: as circunstâncias físicas eram só por si desagradáveis. Não foi, porém, apenas isto que criou tensão: um longo Inverno citadino de desentendidos tinha-se instalado entre os dois.

Daí os gestos ríspidos, por vezes precipitados. As palavras entrecortadas, inusitadas como pedras frias, sem sentimentos. Montaram a tenda, armaram nela as roupas de ocasião e os sacos cama. Beberam duas cervejas no bar do parque.

Em silêncio e sem olhares.

Poder-se-ia dizer que não eram necessárias as conversas num casal que se conhece há tanto tempo como este. Mas mentiríamos. É todo o peso do que não se conseguiu dizer o cenário para a história.

Uma pequena tragédia.

Avancemos, contudo, um pouco mais na trama deste par.

Ele: tinha a ideia da eternidade do amor. Mergulhava na agressividade dos desentendimentos com toda a impulsividade, mas sentia que nada estava em causa. Se calhar ela não pensava assim... se calhar ele deveria partilhar mais os seus pensamentos.

Ela: não compreendia a causa da agressividade do seu companheiro. Será que ele a amava? Sentia-se ferida mas convencia-se que tudo estava bem. Dizia-lhe isso, ele acreditava, mas depois nada estava bem e afogava-se em dúvidas.

Voltaram à tenda: um banho fresco e o jantar improvisado, confeccionado ao ar livre. Mais uma vez, algumas horas passadas em silêncio. Depois o regresso à cidade: desceram a rua íngreme, protegida da noite, de seguida atravessaram o descampado despojado daquela agressividade das horas diurnas.

Embrenharam-se na malha urbana, insuflados pelas alegrias do verão. Os pequenos jardins, cheios de pessoas e de música. Não interessa que tipo de música: dance-se.

Uma esplanada oferecia um palco acolhedor para o silêncio que se instalara entre os dois. O diálogo era pesado e descontínuo. Poderíamos até falar, como alternativa, em monólogos incomunicantes.

Sentaram à mesa.

- Sabes (diz ela) quero-te dizer uma coisa mas promete que não te vais zangar...

O que é que será? - pergunta-se ele - fez uma maldade? Uma maldade muito grande? Aguento ou não? Mas prometer o perdão antes de saber o pecado é tarefa contraditória.

De qualquer modo diz ele: - Diz, fala, conta... como posso prometer o que me pedes?

A surpresa vem sempre de um lugar completamente novo.

- (diz ela) Naqueles meses de Fevereiro traí-te.

É bem como dizíamos.

Os detalhes da traição: ele tinha-a levado com todo o carinho a uma festa. Ela pedira-lhe que não fosse. Ele entendeu-a e despediu-se cheio de amor... e a traição.

A situação é paradoxal: não lhe apetecia perdoar, mas soube de um acontecimento que já se consumou há meses. Pertence ao passado: tantas coisas boas aconteceram desde então.

- (diz ela) Fiquei muito arrependida, foi por isso que depois te tratei muito bem, fiz e dei-me a ti o melhor que pude.

Ele lembra-se dessas explosões de ternura, estranhou-as e bebeu delas. Alegrou-se. Estava tão perto e tão longe de imaginar o motivo desses comportamentos.

De qualquer maneira, a situação é extremamente delicada.

- (diz ela) Não dizes nada?, fala comigo, tu prometeste... - como se podia prometer uma coisa daquelas? Daí o silêncio e o tumulto de palavras contrárias a baterem na cabeça do nosso homem.

- Não dizes nada?

Ele levanta-se da mesa, mudo, atravessa a esplanada, cheia de conversas de verão. No meio do jardim havia um pequeno chafariz.

Ele aproxima-se dessa água e mergulha nela. Ela levanta-se e faz a mesma coisa. Na esplanada todos reparam no inaudito do acontecimento

Eles saem do chafariz, com as roupas completamente molhadas. Afastam-se da cidade pelo descampado, agora inundado de abóbada. Estrelas cadentes. Sobem a rua protegida pelo medo até alcançarem a tenda.

A noite partilhada de desilusões.

Rui Tinoco

(Rui Tinoco é português do Porto e nos enviou este conto por e-mail)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Complementando a ata de André...

De fato, que tempo chuvoso. Pensei cá comigo: essa turma vai furar, essa turma não vem. Depois de me apresentar à Jadercy, apanhei um livro de Graciliano e ocupei um dos assentos de uma das mesas da biblioteca. Não consegui me concentrar na leitura, na expectativa de que chegasse mais alguém. O primeiro que adentrou, majestoso, foi o André e seu irrepreensivel guarda-chuva. Beto Menezes e Mariano chegaram em seguida, um após outro, respectivamente.

O clima na biblioteca é muito agradável. Além do calor humano, tem ar condicionado e tudo. A receptividade a nossos propósitos foi excelente. A Jadercy ressaltou a importância de, na cidade, existir um clube do conto, pessoas que se reúnem para ler e escutar histórias. Ela acha fantástico que existam coisas assim em João Pessoa. O esposo de Jadercy se engajou em nossas conversas e, muito animado, propôs que a gente se apresentasse no TRT. Ele preside a área de cultura do TRT.
Quando estávamos no auge das articulações, todos muito sérios, compenetrados, ouviu-se uma voz estridente no recinto: “É hora de levantar. São 17 horas... É hora de levantar, são 17 horas...” Era meu ridículo celular me lembrando que eu devia tomar um remédio naquele momento. E quem disse que alguém conseguia parar de rir?
Depois que André e Beto Menezes saíram do recinto, ficamos Mariano, eu, Jadercy e seu esposo concluindo o papo. Jadercy nos acenou com a possibilidade de abrir a biblioteca aos sábados para nós, das 16 às 18 horas, já que existe um serviço de segurança (vigilante) permanente no local. Ela recomendou também que alguém fizesse um documento por escrito, em nome do Clube do Conto da Paraíba, solicitando o espaço nesse horário e entregasse a ela.
Fim de papo e saímos enfrentando um toró debaixo de nossas sombrinhas e guarda-chuvas jamais esquecidos.
Até que alguém desdiga, fica o dito pelo mesmo dito.
Dôra

Cronofobia (à sombra dos cronômetros em flor)

A proximidade dos aniversários lhe causava suores frios. Com a imunidade baixa para opiniões alheias, era facilmente cooptado para programas infinitos. Descobriu tarde demais que o medo aos filmes de Hitchcock decorria menos do suspense do assassinato do que da duração da película. Na saída da faculdade, a sensação de que seria cardíaco mais cedo, caso seu pai não chegasse com o carro. O pavor ao tempo também lhe trouxe a impotência e o câncer de prostração.

Única felicidade nem foi em vida: o caixão baixou em exatos 7 segundos.


André Ricardo Aguiar

Agorafobia (ou há-de-vir-fobia)

Com todo universo infindo lá fora que não cabe na mente, em nenhuma religiosa inspiração, prefiro a vida, essa gaiola de ouro. Sob luzes cartesianas, com asas atrofiadas pela opressão do catre, no alvor dos dias, imagino. Prefiro ficar, mesmo sabendo que os portões que me prendem são de amarras podres. Mesmo sabendo que ninguém pode me impedir de voar. Prefiro ficar. Talvez não saiba voltar. Talvez não queira voltar. Na dúvida pelo que não vivi, fora dessa limitada vida, covarde escolho ficar.

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Betomenezes

Ata em dois atos

Primeiro ato: numa tarde chuvosa alguns integrantes do clube foram à biblioteca da praça da paz. Como um passeio da imaginação, fechei meu guarda-chuva e adentrei o recinto. De uma mesa, perto das brancas estantes, estava Dorinha. Aguardávamos uma conversa com Jadercy (se a grafia não me trai) e nesse ínterim, chegou Beto Menezes e bem depois, Antônio Mariano. Embora cientes de que não podíamos passar por cima de decisões sem as autorizações superiores do Sesi, encontramos ali muita disposição para os contadores de histórias – num primeiro momento, acharam que o clube era especialista em histórias infantis – e ainda com convites para apresentação no Tribunal Regional (ou equivalente jurídico que me escapa) pelo marido de Jadercy, que preside o dito – me corrijam se não for isto. Se a parceria vinga, ainda temos possibilidade de trocar o café pelo chá, e o claro-escuro pela brancura coalhada de coloridas janelas chamadas livros. E se preferível, com o celular de Dôrinha no mais absoluto silêncio e sem hora para levantar (lembra, Dôrinha?).

Segundo ato: o sábado recente foi uma reunião feliz, com contos à beira da fobia, com convidados e muita malícia subterrânea: os Andrés, Ronaldo, Valéria, Dôrinha, Beto, entre outros. Psicanalistas traiçoeiros, na verdade um, com cachaça programada, se esmerou em pôr mais uma pá de cal na credibilidade da raça dos poetas, com um conto para lá de imaginativo e que durou menos de meia hora. Ainda tivemos conto de inversão narcisista e contito de diminuição paragrafal, conto materno e pelo que me lembro, que o autor da ata nem sequer chegou ao final, acho que de contação foi só o que houve. Uma nova integrante deu as caras, Amanda K, que está para lançar seu livro de contos e participa ativamente do mundo blogueiro (http://amandak.zip.net). Tereza e Adriano tomaram seus assentos e seguimos o rumo de oratório e de leitura. Mariano chegou bem depois, com conto ou sem conto: não conto com a informação, até o fechamento desta redação. No mais, o tema próximo é chega de saudade. E para completar, chega de ata.

Fim dos atos.

sábado, 3 de maio de 2008

A complicação

um conto em seis parágrafos

Ontem, acordei desnorteado hoje, acho que tudo começou ontem a ontem quando um amigo disse pra mim que amanhã chegaria aqui hoje. Agora nem sei se o aqui é acolá, ou o acolá é lá. Pra mim, hoje foi dia 36, mas nenhum mês tem o dia 36 nem no calendário lá da cozinha, por sinal, marquei este dia em um espaço em branco na página de um mês aleatório.

Resolvi freqüentar um psicanalista, ele disse que o problema é que sou contraditório só porque falei que cumprimento as pessoas com despedidas e quando saio pela porta da frente dou de cara com o quintal. Ele deve estar certo, pois percebeu que nas primeiras consultas eu ficava calado, mas antes e depois, quando estava na sala de espera, falava pelos cotovelos. Ainda bem que ele possui um raciocínio rápido, minha consulta agora é no horário em que fico na sala de espera, esperando a consulta, e minha espera é durante a consulta. Eu e ele ficamos escorados na porta, para que um escute bem o outro.

O psicanalista me receitou bastante açúcar para adocicar a vida. O problema é que já não sei onde encontrar o açúcar, pois, durante uma época, escrevi açúcar no pote de sal e sal no pote de açúcar, não lembro se para enganar as formigas ou de quando queria provar um doce salgado. Quando pensei ter encontrado o açúcar, queimei a garganta, era pimenta, foi do tempo em que queria uma pimenta adocicada.

Joguei todos os meus potes de sal, açúcar e pimenta no lixo. Fui para o mercado comprar açúcar. Me perdi no meio do caminho, tornei-me um desaparecido. Sei que sou desaparecido, várias vezes encontrei cartazes com meu rosto estampado e letras garrafais dizendo DESAPARECIDO.

Não lembro se foi eu quem colou esses cartazes ou foi minha família, sempre quis saber como é a vida de um desaparecido. Dificilmente foi minha família, eles devem estar feliz com meu sumiço, principalmente os meus parentes mais velhos, pois dizem que cresci, mudei bastante e não sou mais o mesmo de outrora...

Talvez seja isso, eu não sou mais eu, mudei para outra pessoa. Sim, é isso, hoje é quinta-feira, pra cumprimentar se diz oi, despede-se falando tchau, o quintal é atrás, a rua é na frente... Tchau, psicanalista. Não sou desaparecido, eu me achei.

Laudelino Menezes

(Texto apresentado na reunião do Clube do Conto da Paraiba, sábado, dia 3/5/2008)