Semanalmente, ou quinzenalmente, ou, no máximo, trimensalmente, publicaremos contos dos participantes do Clube do Conto. Nesta edição número meia-duzia: Dôra Limeira.
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Dôra Limeira tenta trazer a lume realidades que, por se esconderem atrás do óbvio, pouco são percebidas. Ruídos do cotidiano, gemidos de carências alimentares, de necessidades sexuais e afetivas. Sussurros de pessoas velhas, doentes terminais, pessoas desagasalhadas. Em seus escritos, esta contista tenta ouvir e expressar murmúrios escatológicos, religiosos, libidinosos, murmúrios domésticos. No ato de criação, todos os gemidos valem a pena.
Dôra Limeira é paraibana, nascida em João Pessoa, bairro de Cruz das Armas.
Fez os primeiros estudos em escola pública. Na seqüência, estudou em colégio particular religioso, de onde saiu para a Universidade Federal da Paraiba. Graduou-se e especializou-se em Historia. Ministrou aulas em escolas particulares e públicas. Também lecionou na Universidade Federal da Paraíba. Como professora/pesquisadora, desenvolveu projetos de pesquisa sobre Historia Regional do Nordeste. Como parte da vida acadêmica, escreveu e publicou textos técnicos restritos à sua área profissional.
Depois que se aposentou, Dôra Limeira passou a dispor de tempo e espaço onde colocar em prática uma atividade que sempre a fascinara desde criança e que não desenvolvera até então por falta de oportunidades: literatura. A internet foi seu primeiro canal de expressão e divulgação literária. Participou de sites literários, escrevendo contos, comentando, interagindo com outros escritores. Estimulada pela satisfação de escrever e incentivada por amigos, recolheu todo o material acumulado e publicou seu primeiro livro - Arquitetura de um Abandono que lhe valeu um destaque: foi considerada a Revelação Literária de 2003 pelo Correio das Artes, suplemento do jornal local A União.
Dôra Limeira é uma das pessoas fundadoras do Clube do Conto da Paraíba, que existe desde junho de 2004.
Livros de contos publicados até o momento: Arquitetura de um Abandono (2003), Preces e Orgasmos dos Desvalidos (2005), O Beijo de Deus (2007), todos editados pela Editora Manufatura, com ilustrações de Vant. Está prestes a ser publicado o “Os gemidos da rua”.
Dôra Limeira tem projetos para um próximo livro que, certamente, não será de contos, segundo ela mesma adiantou.
O e-mail válido para contatos é
doralims@bol.com.br.
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EU QUERO COMER BRIGADEIRO
Preto, traje roto, sandálias de dedo, ele morava num aglomerado habitacional de taipa, na periferia. Era menino ainda, mas suspeitaram que fosse bandido. Seu corpo amiúde fazia mogangas sobre um monte de barro, no arruado onde morava, equilibrando-se com agilidade. Brincava de ser cristo redentor, braços esticados, mãos estendidas sobre um corcovado de brasilites e isopores rasgados. Vadiava sob os aplausos da meninada e dos adultos desocupados. De tanto repetir a brincadeira, ganhou um apelido: “Cristo Redentor”, Cristim na intimidade. Era franzino, comprido e não tinha medo de nada. Nos horários da escola, ora estendia seus braços em cruz sobre o arruado, ora se postava junto aos semáforos. Fazia malabarismos e virava cambalhotas diante dos carros parados no sinal vermelho. Comia fogo, canivetes, tesouras. Assim, ganhava uns trocados e entregava, em casa, à sua mãe que também tinha apelido – Dona Maria de Cristim. Um dia, final de tarde, parou junto à vitrine de uma lanchonete. Foi quando suspeitaram que fosse bandido. Imóvel, avistou os doces e brigadeiros, bolos confeitados, empadas e pastéis. As glândulas salivaram. Com a fome nos olhos e a boca babando, Cristim apalpou os bolsos rasos da bermuda. Ouviu o tilintar das moedas que arrecadara comendo tesouras no último semáforo. Retirou as moedas do bolso e pensou eu quero comer brigadeiro. Mas não houve tempo. Um jato de sangue jorrou-lhe das entranhas e as moedas tilintaram no chão. Rolaram ladeira abaixo, alegres. Para Cristim, já não valiam nada. Seu corpo deu entrada no IML, sem sinais especiais que o identificassem, sem dono. Serviu de exemplo nos noticiários de televisão. O rosto morto foi capa de revista policial. Tarjas pretas cobriram-lhe os olhos desbotados, envergonhados. Cristo Redentor era menor de idade, um menino ainda, mas pensaram que fosse bandido. Em casa, sua mãe esperou a noite inteira. Volta para casa, Cristim, pensava. E chorava feito uma pietá. Dona Maria não sabia que, rígido e frio, Cristo jazia numa gaveta de frigorífico, sem túnica.