O calor infiltrava-se nas ideias. O sol reflectia-se na terra a perder de vista e atacava os corpos indefesos pela única via que restava utilizar: o solo. A camioneta fora lenta: como uma armadilha construída para fazer sofrer.
Depois apearam-se e o calor mostrou-se traiçoeiro.
Pegaram nas mochilas, na tenda para acampar. Indagaram pelo parque de campismo. Teriam de percorrer um descampado, subir por uma rua mais protegida de sombra.
Um trilho interminável.
O casal mostrava-se de mau humor: as circunstâncias físicas eram só por si desagradáveis. Não foi, porém, apenas isto que criou tensão: um longo Inverno citadino de desentendidos tinha-se instalado entre os dois.
Daí os gestos ríspidos, por vezes precipitados. As palavras entrecortadas, inusitadas como pedras frias, sem sentimentos. Montaram a tenda, armaram nela as roupas de ocasião e os sacos cama. Beberam duas cervejas no bar do parque.
Em silêncio e sem olhares.
Poder-se-ia dizer que não eram necessárias as conversas num casal que se conhece há tanto tempo como este. Mas mentiríamos. É todo o peso do que não se conseguiu dizer o cenário para a história.
Uma pequena tragédia.
Avancemos, contudo, um pouco mais na trama deste par.
Ele: tinha a ideia da eternidade do amor. Mergulhava na agressividade dos desentendimentos com toda a impulsividade, mas sentia que nada estava em causa. Se calhar ela não pensava assim... se calhar ele deveria partilhar mais os seus pensamentos.
Ela: não compreendia a causa da agressividade do seu companheiro. Será que ele a amava? Sentia-se ferida mas convencia-se que tudo estava bem. Dizia-lhe isso, ele acreditava, mas depois nada estava bem e afogava-se em dúvidas.
Voltaram à tenda: um banho fresco e o jantar improvisado, confeccionado ao ar livre. Mais uma vez, algumas horas passadas em silêncio. Depois o regresso à cidade: desceram a rua íngreme, protegida da noite, de seguida atravessaram o descampado despojado daquela agressividade das horas diurnas.
Embrenharam-se na malha urbana, insuflados pelas alegrias do verão. Os pequenos jardins, cheios de pessoas e de música. Não interessa que tipo de música: dance-se.
Uma esplanada oferecia um palco acolhedor para o silêncio que se instalara entre os dois. O diálogo era pesado e descontínuo. Poderíamos até falar, como alternativa, em monólogos incomunicantes.
Sentaram à mesa.
- Sabes (diz ela) quero-te dizer uma coisa mas promete que não te vais zangar...
O que é que será? - pergunta-se ele - fez uma maldade? Uma maldade muito grande? Aguento ou não? Mas prometer o perdão antes de saber o pecado é tarefa contraditória.
De qualquer modo diz ele: - Diz, fala, conta... como posso prometer o que me pedes?
A surpresa vem sempre de um lugar completamente novo.
- (diz ela) Naqueles meses de Fevereiro traí-te.
É bem como dizíamos.
Os detalhes da traição: ele tinha-a levado com todo o carinho a uma festa. Ela pedira-lhe que não fosse. Ele entendeu-a e despediu-se cheio de amor... e a traição.
A situação é paradoxal: não lhe apetecia perdoar, mas soube de um acontecimento que já se consumou há meses. Pertence ao passado: tantas coisas boas aconteceram desde então.
- (diz ela) Fiquei muito arrependida, foi por isso que depois te tratei muito bem, fiz e dei-me a ti o melhor que pude.
Ele lembra-se dessas explosões de ternura, estranhou-as e bebeu delas. Alegrou-se. Estava tão perto e tão longe de imaginar o motivo desses comportamentos.
De qualquer maneira, a situação é extremamente delicada.
- (diz ela) Não dizes nada?, fala comigo, tu prometeste... - como se podia prometer uma coisa daquelas? Daí o silêncio e o tumulto de palavras contrárias a baterem na cabeça do nosso homem.
- Não dizes nada?
Ele levanta-se da mesa, mudo, atravessa a esplanada, cheia de conversas de verão. No meio do jardim havia um pequeno chafariz.
Ele aproxima-se dessa água e mergulha nela. Ela levanta-se e faz a mesma coisa. Na esplanada todos reparam no inaudito do acontecimento
Eles saem do chafariz, com as roupas completamente molhadas. Afastam-se da cidade pelo descampado, agora inundado de abóbada. Estrelas cadentes. Sobem a rua protegida pelo medo até alcançarem a tenda.
A noite partilhada de desilusões.
Rui Tinoco
(Rui Tinoco é português do Porto e nos enviou este conto por e-mail)
3 comentários:
adoro os sentimentais...rs
não sei se rie ou chore ;)
não sei se rie ou chore ;)
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