Clube do Conto
Publicado no Correio das Artes, João Pessoa, 28/07/2006
(CAPA)
Memória literária
Por Patrícia Braz
Ele diz que da memória só bebem os justos. Àqueles que merecem guardar a memória depois da morte. Sobre seus personagens presentes na obra "Memória do Fogo" (Objetiva, 128 páginas), o escritor Ronaldo Monte diz que eles morrem sem memória. A memória que os habita é a do fogo, a do deus que os recolhe finalmente em seu seio. E explica: "O conceito psicanalítico de memória com o qual eu trabalho não coincide exatamente com o de lembrança ou recordação. Nem toda memória torna-se lembrança. Nem toda lembrança é confiável como factível", arremata. Para o autor que estréia no gênero romance, a memória do fogo é o que resta daquilo que não foi perdido e se descortina na história dos personagens entremeada pelo fogo, cada qual ao seu modo, compondo um manto tal qual uma colcha de patchwork, cujos retalhos medidos são trechos de vidas.Ronaldo Monte se debruça sobre o tema da memória chamuscada pelo fogo das vidas dos personagens que inspiraram o escritor ainda quando perseguia o doutorado, desde os anos de 1990 e 1991, em Campinas. De lá para cá tem sido um exercício constante de lapidação. Segundo o autor o texto estava pronto há cinco anos. "Mas como eu não queria mais uma "edição do autor" e não aparecia oportunidade de furar o mercado nacional, o texto foi sendo revisado, comentado por gente de confiança. Acho que esse tempo de espera fez bem ao livro. Ele amadureceu", avaliou."Memória do Fogo" (R$ 27,90), de Ronaldo Monte, é o terceiro título da coleção Fora dos Eixos, que já lançou "O vôo da Guará Vermelha", de Maria Valéria Rezende, e "Voláteis", de Paulo Scott. A coleção pretende, nas palavras escolhidas pela editora, "buscar a qualidade literária fora do eixo Rio/São Paulo". Mas está longe de ser enquadrada como literatura regional, algo há algum tempo atribuído ao estilo de Ronaldo. E o autor explica: "acho que esta questão já está superada. De uma forma ou de outra, todos somos regionalistas. O escritor que conta as tramas de um quarteirão da avenida Paulista ou de uma favela do complexo do Alemão está, a seu modo, sendo regionalista. No final das contas, falamos todos de uma região virtual que nos habita e nos constrói. Ela é composta dos lugares em que vivemos, das pessoas que roçamos, dos livros que lemos, dos quadros que vimos, dos filmes ou novelas que vemos. Esta região nos acompanha e exige que falemos dela". Na opinião de Maria Valéria Rezende, a obra a que se remonta é digna de ler uma e outras vezes seguidas, sob a doce pena de descobrir uma nova viagem a cada processo. Sobre o possível aspecto regionalista do texto ela afirma: "vida humana é vida humana em qualquer lugar, e dar conta dela é o papel da literatura, em qualquer lugar"
Ao ser questionado sobre qual o ponto de partida para criar e construir um trabalho literário a exemplo deste último recentemente apresentado ao público (Memória do Fogo foi lançado em João Pessoa na última sexta-feira, 21), Ronaldo, tomado pelo ímpeto de soltar uma despojada risada que se dissipa pelos quatro cantos do terraço azul da casa onde mora, no Bairro dos Estados, na pacata João Pessoa, diz, entre risos: "não sei". Assim, curtinho e simples, deixando a impressão de que entre concepção e tradução em palavras até formar uma obra de reconhecimento literário autenticado por doutores em Letras a exemplo de Neroaldo Pontes e João Batista de Brito, há uma distância que não se traduz em tempo nem em forma.As idéias, segundo Monte, surgem como algo que não é buscado. Sua inspiração, conta Ronaldo Monte, resulta do encontro de uma impressão do cotidiano com uma exigência de expressão de alguma coisa interna que a princípio lhe é desconhecida. Diz não ser do tipo de escritor que se cerca de silêncio e distância para expelir sua genialidade. E acrescenta: "Claro que não escrevo com gente bisbilhotando às minhas costas nem fazendo zoada no meu pé de ouvido. Mas mostro logo tudo que faço ao pessoal da casa. Minha mulher é meu primeiro censor, mas nem sempre a escuto. A experiência com o Clube do Conto de João Pessoa é muito boa para uma avaliação permanente da minha produção. Toda semana tem um tema para o dever de casa. Nos fins de tarde dos sábados nos reunimos e lemos a produção da semana. Se o autor autorizar, faz-se a crítica do texto, evitando-se o clima persecutório. Devo ao Clube do Conto o aprimoramento do meu texto, além da publicação do "Memória do Fogo". Sobre o ato em si de traduzir a história reservada na mente em palavras com sentido e ordem, Ronaldo diz que nesse ponto cabe ao escritor, "dominar o impulso. Domesticar a sua exigência". E como que frente a um segundo personagem que responde pela alcunha de "Idéia" apresenta-se a ela como se a tal sujeita fosse seu oponente e concorda: "tudo bem. Eu escrevo", para em seguida ordenar:" Mas há as exigências. As minhas exigências". À esta altura, caro leitor, permitam a esta repórter tentar descrever a cena que se fazia compor durante o exercício jornalístico de entrevistar uma sumidade como Ronaldo. Enquanto seguia explicando a dinâmica da escrita, acrescentando o diálogo mantido com a tal da "Idéia", Ronaldo se desprende do momento em que está contextualizado, ou seja, concedendo uma entrevista exclusiva para este suplemento literário, perde-se em segundos e assume ares de um autêntico ator em pleno exercício de interpretação dramática. Um só instante, diriam agentes do fazer teatral, em que o personagem toma conta do ser. Revelado o momento de interação entre escritor e idéia, Monte ressalta que, como tal, tomado pelo desejo de dominar o elemento matéria-prima da história, é necessário colocar-se como escritor de fato e atuar, tirar os excessos, conter as palavras pomposas e dar espaço para a emoção do leitor.E confessa que não escreve para si nem acredita tampouco que alguém o faça. Também diz que não escreve para qualquer um. "Acho que assim estaria fazendo bobagem. Escrevo para certas pessoas". Sobre a obra Memória do Fogo, Sergio Rodrigues diz: "não é um livro fácil. Regionalista e intimista ao mesmo tempo, tem uma prosa de alta densidade poética dentro da qual a narrativa avança com lentidão de sonho. Ronaldo tem voz própria e um admirável domínio da linguagem". O rápido flagrante do transe voltará a marcar essa entrevista que em tom descontraído e despretensioso navegou pela narrativa apresentada pelo escritor sobre sua vida. Além de psicanalista, Ronaldo foi também repórter foca do Caderno de Esportes, do Jornal do Comércio, em Recife, e ainda publicitário. È também, e especialmente, nesta fase em que atua como criador de textos publicitários que o psicanalista diz ter exercitado sobremaneira a construção da linguagem. Lembra que nessa época trabalhou com Ítalo Bianchi, profundo conhecedor do latim, da língua portuguesa. E, numa "espécie" de competição com Bianchi na busca constante do texto perfeito acabou por esmerar a construção textual.O ofício da escrita veio, portanto, antes do outro ofício que carrega, o de psicanalista. O escritor conta que já na infância se aventurava pelo sabor de escrever poemas. Mais tarde vira redator de propaganda, em Recife. "Afiei meu texto a soldo. Aos poucos fui tentando o texto curto, uma crônica aqui, um conto ali, alguns textos inclassificáveis que teimavam em continuar poemas. Foi a psicanálise que cafetinou minha escritura. Meus textos acadêmicos são palatáveis, o que não quer dizer que sejam de fácil digestão". Ronaldo considera natural que as pessoas, ao saber que também é psicanalista, passem a procurar e até, achar em seu texto referências ao Édipo, à castração, etc. E confessa: "Mas até onde eu saiba, não procuro deliberadamente tratar de temas psicanalíticos. Mas como nada do que é humano é estranho à psicanálise, é natural que os personagens vivam certos temas visados pelo saber psicanalítico. Só não posso negar que minha forma específica de escuta, marcada por uma neutralidade benevolente, influencia o modo como permito que os personagens se expressem, como consigo sintonizar com seus sentimentos, numa espécie de identificação que aprendi a usar no consultório".
O argumento central da história apresenta um grupo de cachaceiros, totalmente vividos pela embriaguez e que se junta em um determinado lugar para enfrentar um destino comum. Segundo o autor, o que ele fez foi acompanhar a trajetória de cada um desses homens desde a meninice até o momento do encontro. "Estabeleci que cada um deles teria uma profissão ou uma experiência marcante ligada ao fogo. Mas logo no primeiro capítulo apareceu uma mulher com uma filha no colo. Darque, Joana Darque, é o seu nome. Ela vai cruzar com cada um destes homens ao longo da narrativa. Aproveitei dela para contar evolução do uso do fogo nas cozinhas. Ela só se casará com um homem que lhe der um fogão a gás", conta o autor. De acordo com Ronaldo a história conta a trajetória de pessoas que são lançadas no mundo em completo desamparo e não conseguem construir suas vidas. São devorados pelo fogo do álcool que toma conta de suas memórias. Antes, lhes empresta uma memória construída em torno de quase cinzas. No final, o fogo é como um deus benevolente que consome seus filhos a partir do dentro de seus corpos. Como uma graça por haverem se embebido da água ardente. "Podem até pensar que fui cruel com meus personagens. Mas eu fui misericordioso", pondera. No romance, o elemento fogo aparece revestido nas suas mais diversas manifestações, e, de alguma forma, costura os personagens que desfilam pelo livro de Ronaldo. Ele ressalta que há uma relação entre o fogo que consome e a tal água ardente. Eles incorporam como divindade. E a memória que lhes vem a partir dessa ingestão é a memória dessa divindade. O elemento central é falar da transcendência do íntimo de modo pífio, já que não se tem muito por onde transcender. O autor revela que o livro traz muitas referências que levam o leitor a entremear-se entre as palavras e que tem mais cheiro do que cor. "O cheiro das cozinhas, por exemplo, é fortemente emergido", lembra. No texto é visível a permanência da estrutura do conto em cada um dos capítulos. Mas eles só fazem sentido quando vistos em conjunto. No tempo de construção do livro, Ronaldo Monte conta que logo após o que pensou ser uma obra literária concluída expoente do gênero romance - pelo menos era o que ele pensava já ter feito -, colocou a versão (a primeira) nas mãos de dois amigos sobre os quais resguarda grande admiração e sobretudo, respeito, Neroaldo Pontes e João Batista. Segundo o escritor eles foram unânimes em afirmar que o texto era muito bom, mas que não era um romance. "Voltei para casa e tentei criar um eixo que costurasse mais firmemente os capítulos. Mesmo assim, eles guardam ainda uma certa independência", e brinca: "espero um crítico generoso que chame isto de pós-modernismo".A oportunidade de lançar o romance pela Objetiva, na opinião de Ronaldo demonstra que não é necessário estar dentro do "eixo" São Paulo/Rio para fazer parte dele. E diz: "Nem todo escritor do falado 'eixo' está dentro dele. O 'eixo' é o mercado", define. Ronaldo mora em João Pessoa e não vê isso como obstáculo para inserir-se no mercado. Nascido em 1947, em Maceió (AL), é psicanalista radicado na Capital paraibana onde além de escrever também atua como psicanalista e clinica no oitão de sua casa. Confessa ser um leitor que não dispensa o que lhe cai as mãos. "Não sou um leitor sistemático. Minha família não tinha tradição de leitura e tive que me virar sozinho. Mas lá em casa tinha uma coleção do Tesouro da Juventude que foi a minha salvação. Comecei com José Lins do Rego de quem tomei emprestado o imaginário rural". À esta altura Ronaldo se declara um nordestino urbano do litoral, um caranguejo, como disse Gilberto Freire", conta. E acrescenta: depois vieram Machado de Assis, Graciliano, Guimarães Rosa e quase todo o Mário de Andrade e um poço do Oswald. Os poetas também pontuaram o seu acervo de leituras literárias. Entre eles "Bandeira, Vinicius, Drumond, Murilo Mendes, João Cabral, Mário Quintana, enfim, o serviço militar obrigatório e passagem também obrigatória por Fernando Pessoa, Lorca e Octavio Paz. E ainda um pouco de Baudelaire, para não esquecer os franceses". Entre as mulheres Monte destacou. Clarisse Lispector e Adélia Prado. E na confluência da poesia com a psicanálise tem Hölderlin. Dos pernambucanos, além do texto de Gilberto Freire, relata que recebeu forte influência de Hermilo Borba Filho, passou um tempo querendo ser o João Ubaldo. E lê, mais ou menos por livre associação Thomas Mann, Günter Grass, Antonio Callado. "Um texto que muito me espantou foi o de Saramago. Li o "Memorial do Convento" numa edição da Difel, muito antes dele se tornar famoso. Hoje, estou enjoado da sua forma. Recentemente, ando encantado pela narrativa de Ítalo Calvino. Gostaria de ter a delicadeza dele". E para arrematar, comentário de Chico César, músico paraibano, sobre obra e autor de Memória do Fogo: "estou lendo e ouvindo a música que vem das palavras de Ronaldo que conheço de longa data e ainda me espanta".
Saiba MaisRonaldo Monte é autor dos livros: "Pelo Cantos dos Olhos", "Memória Curta", "Tecelagem Noturna", "Pequeno Caos" além de ter publicado em parceria com Pedro Osmar o poema intitulado "W.T.C", (de World Trade Center).
(Correio das Artes, 29 e 30 de julho de 2006)
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