sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sessão de Contos

Um conto do português Rui Tinoco, apreciem.

***

Quadro histórico

O dia estava cinzento. Contava, minuto a minuto, o tempo que faltava para a entrevista. Sentia um nervoso miudinho. Cheguei ao local com quase uma hora de antecipação. Olhei uma outra vez para o meu curriculum. O que nos levou a toda esta escrita? Irei falar com um senhor, tentar arranjar um emprego: estará a falar comigo mas, para ele, serei somente um caso mais para avaliar. O diálogo estará viciado à partida.

O compartimento onde se faz a espera é desconfortável, os outros candidatos amontoam-se em redor. Não consigo deixar de pensar que estou em território inimigo, sou aqui um estrangeiro. Observo o terreno minuciosamente: vagos cartazes com avisos insignificantes, revistas usadas em cima da mesa, velhas e já inúteis.

Estou em terreno inimigo. Desejo realmente o emprego? Um enorme sentimento de vacuidade enche-me a alma. O melhor era estar quieto. Os sábios são aqueles que entendem que nada vale mesmo a pena: era preferível deixar de desejar.

Desisto? Existem também as obrigações da vida: a inevitabilidade da construção de uma pequena economia doméstica. Entradas de dinheiro e despesas. A vitória nesta entrevista seria uma lança em África, o início da construção de um sonho.

Faz-me sorrir a antiguidade desta última expressão, uma lança em África... A nossa linguagem possui ainda reminiscências das batalhas antigas. Um lugar em África era um passo dado no caminho da construção de um Marrocos português.

Também gostaria de dar hoje um passo na concretização da minha utopia pessoal. Vencer este obstáculo, arrancar-me das horas pesadas sem afazeres relevantes... mas não há afazeres relevantes...

A confusão entranha-se nos sentidos. A face, essa, tem de permanecer inalterável, impassível. Vou vestir a máscara de entrevistado, inventar uma coerência para o meu passado curricular. Desempenharei a farsa que de mim se espera.

- Senhor Pedro, pode entrar.

Entro noutra sala, mais acolhedora sem deixar de ser desagradável. Um vulto farto e acomodado esconde-se detrás de uma secretária.

- Boa tarde.

Ele responde de forma imperceptível, absorto em papéis como parece estar. O inimigo, o exército marroquino, parece indiferente ao meu ataque. Todos os pensamentos que tive até agora esboroam-se na realidade fria da indiferença deste senhor.

- Posso-me sentar?

Ele anui. Sento-me. Aguardo alguns minutos até que ele se inteire dos meus afazeres passados. Enquadrar-me-á nalguma categoria? Se calhar estou já condenado à partida, condenado desde o meu nascimento a ser aqui derrotado. É verdade que se pode aprender muito com as derrotas?

- Podia-me dizer quais as suas qualidades para desempenhar a função a que se candidata?

Vê-se com clareza que não deseja ouvir, que não quer saber a reposta. Para ele, esta pergunta é maquinal, rotineira. Aguardará apenas que se escoem as horas para poder regressar a casa.

Digo-lhe que sou empreendedor, que gosto de ter iniciativa, que sou apaixonado pelo conhecimento. Os olhos dele flutuam para longe da minha fala. Não voam, nem o podiam fazer a partir de um corpo tão disforme. Continuo a descrever as minhas qualidades, sentindo-me imodesto, mas sabendo que o teria de ser.

- Sabe - queixa-se o entrevistador - passamos aqui o dia a fazer sessões destas... estou cansado... e a sua disponibilidade? Está disposto a ir para outras cidades, trabalhar fora do horário?

A sessão estava a correr-me mal. Tinha a nítida percepção disso. Não havia verdadeira vontade de escutar. O meu interlocutor estava cansado, fizera questão em sublinhar o facto. Morrer sim mas devagar, dissera o nosso rei Sebastião no dia em que encontrou a morte em África. Disse-me o mesmo nessa altura.

- Sabe, mete-me confusão esta obrigação da rotina. O mito de Sísifo dos dias sempre iguais. A sociedade parece ter prazer em cultivar este estilo de vida. A pressão para a construção de obrigações, as dívidas ao banco, o comércio do amor e da intimidade de cada um. Não acha que a vida tem que ser algo mais?

Enredei-me pelo trilho do confronto. Dir-se-ia que tinha despido a minha roupagem de entrevistado e que esta súbita e inesperada nudez chocava o senhor gordo e flácido.

Tossicou nervosamente, multiplicou sinais para terminar a sessão, disse: “Bem”; “percebo o seu ponto de vista”; “já entendi aonde quer chegar”. Aguardava apenas um silêncio da minha parte para dar por finda a tarefa.

Apenas o silêncio me separava da derrota.

- Senhor Pedro, é Pedro que se chama, não é? Espero que consiga aplicar na sua vida todos esses sonhos... às vezes também temos que jogar com o mundo real, não concorda? De qualquer modo, desejo-lhe as maiores felicidades para o seu futuro.

Por outras palavras: estava consumada a derrota. Saí do gabinete, desci pelo elevador à rua. Estava noite cerrada. Fechei o casaco, inventei uma urgência para calcorrear afanosamente os passeios.

Tinha já o meu Álcacer Quibir.

5 comentários:

Emerson da Cunha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Emerson da Cunha disse...

Esse texto me lembra muito um texto que acabei de ler nos últimos dias. É a parte III de um texto chamado "Diário de um Chimpanzé", que trata de forma bem intimista sobre uma entrevista de emprego. Deixo aqui o link, vale a pena dar uma olhada: http://arlequinal.com.br/2009/07/26/diario-de-um-chimpanze/

Emerson da Cunha disse...

engraçado perceber as particularidades de cada língua, as relações de simbolismo e significado cultural que cada uma carrega, a exemplo do uso da expressão portuguesa "lança em África", que, mesmo em termos legíveis para nós braileiros, tem significado inteligível apenas para os nossos amigos da terrinha.

Laudelino disse...

Pois é, Emerson, li o "Diario de um chimpanzé" que você indica, realmente a ideia é bastante parecida. Quanto as "gírias portuguesas", não tava entendendo o que era esse Alcacer Quibir, pesquisando no Google, vi que foi uma batalha entre Portugal e Marrocos.

Unknown disse...

vou ler atentamente essa história do chimpanzé... desconheço-a. em relação ao Álcacer Quibir a ideia era apropriar-me de um evento histórico e projectá-lo na vida de uma pessoa. um mitema lusitano

sobre mitologia portuguesa:
http://images.google.pt/images?hl=pt-PT&q=lima+de+freitas&gbv=2&aq=f&oq=