domingo, 14 de outubro de 2007

Resenha sobre os contos de Antônio Mariano


Imensa asa sobre o dia

Sandra Baldessin

Ouvi, certa vez, a afirmação que é mais fácil escrever um romance ou novela do que um conto. Concordo. Escrever um conto que consiga se apropriar das estruturas narrativas e, através delas, produzir um efeito singular no leitor não é tarefa fácil. E, observem, o termo ‘tarefa’, nesse caso, é muito pertinente.

Antonio Mariano, escritor paraibano, poeta consagrado, com seu Imensa asa sobre o dia, livro de contos que integra a Coleção Tamarindo, revela-se um excelente contista.

Imensa asa sobre o dia reúne 13 contos; os protagonistas de todas as histórias são nomeados Jailson, pelo autor. A paixão pela origem dos nomes me obriga a referir que, se Jah é o nome de Deus, as personagens de Mariano trazem o estigma de todos os filhos de Jah: a inexorabilidade da condição humana.

Particularmente, (já que sou viciada em Tchekhov – supremo mestre de todos os contistas - e em Cortazar, seu discípulo) observei que Mariano demonstrou, já nesse primeiro livro de contos, a característica principal de um contista com potencial para se destacar entre seus contemporâneos: seus contos possuem o delicioso caráter de jogo.

Essa função lúdica presente nos contos de Mariano se revela em toda sua expressividade no conto A construção do silêncio. O enigma doloroso da convivência humana surge no jogo de ‘gato e rato’ estabelecido entre o pai e o filho. O conto se dá justamente no momento em que as mentiras essenciais que sustentam essa delicada relação se tornam insuficientes, no instante limiar em que "é tarde para desistir", como a própria personagem observa.

Aliás, o sentido de compreensão tardia de coisas fundamentais para a sobrevivência das personagens permeia todas as histórias e esse fator contribui para ampliar a imagem de jogo presente nos contos. Em Seguindo Alice, sobretudo, a crueldade embutida no conceito de ‘tarde demais’ se cumpre plenamente.

Assistimos as personagens se movimentando no tabuleiro labiríntico que Mariano construiu especialmente para elas e tentamos adivinhar se atinarão com a saída. Ilusão vã que alimenta os filhos de Jah.

Desde as pequenas mazelas até os grandes crimes e insuportáveis alvoroços da alma e do corpo, tudo que é comum ao homem está presente nos Jailsons de Antonio Mariano.

Destaco, ainda, dois dos contos mais instigantes da coletânea: O poeta e O dia em que comemos Maria Dulce. Em O poeta Mariano recupera um desejo surrealista: a possibilidade de viver como poeta, de poetizar a vida, ainda que jamais tenhamos escrito qualquer verso. Um pacato e invisível funcionário público enlouquece (ou chega à razão suprema) e se declara, irreversivelmente, poeta. O conto, em sua aparente simplicidade, revela a condição marginal do poeta e da poesia na sociedade contemporânea.

O dia em que comemos Maria Dulce foge ao realismo presente em todos os outros contos. Mariano utiliza recursos do gênero fantástico-maravilhoso para nos conduzir numa viagem insólita ao reino da fome e das pulsões inimagináveis: "Podia sentir o mormaço do corpo dela... O hálito que era como o bafo de um bolo assando, uma porção de caramelo saindo pelas bordas do tacho, um pudim fumegante, um doce de leite dando o ponto. (...) Minha boca encheu-se d’água."

E mais não digo. Leiam o livro.


http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=1419

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