Clube do Conto
em no mínimo TODO PROSA 24/06/06
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Por Sérgio Rodrigues
Primeira mão
Ronaldo Monte: ‘Memória do fogo’
“Memória do fogo” (Objetiva, 128 páginas, R$ 27,90), de Ronaldo Monte, é o terceiro título da coleção Fora dos Eixos, que já lançou “O vôo da guará vermelha”, de Maria Valéria Rezende, e “Voláteis”, de Paulo Scott. A coleção pretende, nas palavras escolhidas pela editora, “buscar a qualidade literária fora do eixo Rio/São Paulo”. O ponto de partida é lá um tanto questionável: as idéias de centro e periferia andam embaralhadas pela internet, e a velha convicção de que existe um mundão de talento inexplorado fora do “eixo” anda cada vez mais parecida com um mito. Mesmo assim o resultado da coleção tem sido mais que animador. “Memória do fogo” não é um livro fácil. Regionalista e intimista ao mesmo tempo, tem uma prosa de alta densidade poética dentro da qual a narrativa avança com lentidão de sonho. Vale a pena embarcar na viagem porque Ronaldo Monte, nascido em 1947, psicanalista alagoano radicado em João Pessoa, tem voz própria e um admirável domínio da linguagem. Qualidades incomuns dentro ou fora dos eixos.
Foi então que viu pela primeira vez o que nunca queria ter visto. Via as pessoas por dentro. Não as suas carnes, não as suas tripas, não seus esqueletos, nem o azul das veias carregadas do vermelho de seu sangue. Via o que não sabia dizer. Não era bem uma luz, nem parecia uma cor, lembrava a visão de um som, o granulado de um cheiro. Era mais uma impressão, como se a marca da alma do outro fizesse uma marca na sua própria alma. E esse não saber dizer era o que mais o agoniava.
O povo fez uma roda em volta dele. Todo mundo parava para ver o menino de olhos arregalados, olhando assustado para cada rosto, com o que via por trás de cada rosto. Que é que está vendo, menino, me olhando desse jeito? Estou vendo uma mancha escura no lugar do seu coração. A senhora deve ter muita raiva de alguém. Deve ser de algum homem que lhe deixou. O povo começou a rir. Todo mundo sabia que aquela mulher tinha sido deixada há muito tempo por um noivo que foi embora com outra. A mulher teve raiva e saiu apressada, amaldiçoando o menino. O menino é adivinho, o menino é adivinho, a notícia se espalhou de ponta a ponta da rua. A roda aumentou, o círculo em volta dele ficou mais apertado. Sua respiração foi ficando mais difícil. Para não morrer sufocado, começou a olhar para cada pessoa e a dizer, com a voz engrolada, não mais o que via, e sim o que sentia na cara e no corpo dos outros. O senhor roubou seu irmão, esse aqui deu na cara da mãe, essa aqui se perdeu com o patrão, esse outro não pensa em mulher, essa outra matou um anjinho… E as pessoas adivinhadas saíam correndo e dizendo nomes feios com o menino. As pessoas desconfiadas do que poderiam ouvir cuidaram de sair dali antes que a verdade de dentro lhes fosse atirada na cara, na frente dos outros.
Até que uma hora só ficaram cinco pessoas. Cinco não, seis, pois eram quatro homens e uma mulher com uma menina no colo, os olhos das duas meio desencontrados, quase zarolhos, fazendo sentir uma nesga de pena. Os outros, reparando bem, não eram homens feitos. Metidos no trabalho da palha da cana ou no calor da moenda da usina, seus corpos atarracados pareciam de homens, pois ninguém ali crescia muito, era difícil distinguir pelo tamanho um homem de um menino. Mas a cara deles era de menino. Cara de quem ainda espera pelo tempo. E estavam ali para saber o que o tempo havia de lhes dar. O menino olhou de um em um e foi sentindo um aperto no peito. Era difícil dizer o que via. Porque a bem dizer não via. Umas manchas se mexiam no espaço pouco iluminado entre ele e cada um, como a pedir me diga. E ele não sabia dizer. Olhou mais, olhou muito e aos poucos as manchas foram tomando sentido. Mas as palavras, as palavras que as manchas pediam, não se formavam no peito do menino, não subiam pela sua garganta, não ferviam em sua boca como as que cuspiu na cara dos primeiros adivinhados. Olhou primeiro para a mulher com a menina e não viu nada separando as duas. Eram uma coisa só, como se tivessem um só destino. Só no fim, sentia, alguma coisa ia quebrar em muitos pedaços o que agora ele via inteiro. No primeiro menino viu uma lança enfeitada de fitas espetando seu peito. Depois viu um com a cara vermelha de frente para o fogo. Numa cara de menino com dois olhos viu a cara de um homem com um olho só. Num outro, viu um corpo coberto de uma lama cinzenta, parecendo a armadura de São Jorge rachada pelo sol. Não sabia direito o que estava vendo. Baixou a cabeça e disse: não estou vendo nada não, minha gente, vão embora. A verdade da gente ainda está pra se fazer. Disse assim, da gente, sem saber direito por que se botava no meio deles. Nunca tinha visto aquelas pessoas, mas era como se fossem seus irmãos.
Publicado por Sérgio Rodrigues - 24/06/06 12:01 AM
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