Clube do Conto
Estranhas criaturas em cenário desacertado
Cecília Zokner [22/07/2006]
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A primeira edição, com data de 1995 e pela Editora Rio Fundo, do Rio de Janeiro, esgotou e, dois anos depois, Aquelas criaturas tão estranhas foi, novamente, publicado pela Editora Manufatura de João Pessoa: pequeno volume de agradável manuseio, que reúne vinte e um contos de Geraldo Maciel, engenheiro civil que se revela um exímio contador de histórias. Sua galeria de personagens é instigante. Nela, embora alguns se abriguem, muito bem, sob o título do livro – o pai e seus dois filhos se refugiando num lugar inóspito, as três irmãs possuidoras de poderes misteriosos, Aldonário e suas mágicas deploráveis, Lezama, o bonequeiro que, embriagado, destruía os seus bonecos – outros não estão longe dos humanos que lhe serviram de modelo e, quer se queira ou não, ainda vicejam por esse país afora: Adãozinho que, na cidade, exercia “o férreo poder sobre várias cabeças de gado e gente”; o delegado que a enxaqueca fazia lembrar os “serviços” que fizera; o velho Pompeu que a vida inteira trabalhou fazendo estradas e se conforma com uma aposentadoria de “três tostões furados”; Agrípio que não conseguiu, pela miséria em que viveu, criar os filhos que tivera; o preso por ter matado mulher e filhos porque não podia, sequer, alimentá-los.
Obediência filial, cobiça, o drama da mulher, relações amorosas inusuais, autoridade arbitrária e desmedida, solidão, irreversível pobreza, ensejam relatos que testemunham a realidade do país ou ultrapassam as fronteiras do real para se aproximar do fantasioso de um moderno conto de fadas, para palmilhar caminhos delineados pelo sobrenatural. Universos que se recriam numa expressão que oscila entre o lirismo e a troça e se constrói com hábil e sutil manejo de um conhecedor de seu ofício.
Vozes anônimas como a da mulher do conto “Meus meninos” ou a do homem que “O que posso lhe contar?” que uma vida paupérrima leva à situações extremas. O sofrimento de quem deve – “desgraça silenciosa” – comerciar o seu corpo. E disso não apenas ter grande pejo como consciência de que é “surrupiado de uma outra vida” quase tão miserável quanto a sua, “esse dinheiro sebento e amarrotado” que recebe para não morrer de fome ainda que os bocados amarguem a boca e façam “marejar os olhos de lágrimas”.
Dirigida a uma senhora que o fora visitar na cadeia, a confidência iniciada com a pergunta que dá o título ao conto “o que posso lhe contar?” que encadeia as outras: “A senhora conhece o interior? Já viveu por lá? Sabe o que é uma seca?” Repostas que ele mesmo dá e que se referem a viver em chão alheio, em casa alheia, à injustiças, a trabalhar “de sol a sol”, “de inverno a verão” e comer pouco “para não ficar devendo ao patrão”. E, num crescendo, o testemunho de uma sobrevivência na miséria: a fome, o acirrado desespero de ser incapaz de supri-la, a louca decisão: “A mulher me olhou como quem já sabia o que eu ia fazer e tenho certeza que até pedindo para que eu fizesse logo”.
Contrapondo-se ao doloroso viver – martírio sem redenção – que tais vozes, perturbadoras e terríveis, afirmam existir, as seqüências que revelam situações tão descabidas que pareceriam uma invenção trocista não fossem as já conhecidas trapalhadas com que os governos subdesenvolvidos aquinhoam o seu povo: engenheiros do governo – “Pensavam que a terra era um pedaço de papel colorido e traçaram um risco preto de um ponto a outro” – a determinar, planejar, decidir tarefas e rumos, explicar muito, para fazer uma estrada que resulta em nada. Porque os “trechos se trespassaram com distância de léguas. Uma turma foi detida quando, já na Bahía, se preparava para demolir uma igreja que o imperativo da engenharia mandava demolir; uma outra turma desapareceu num túnel que ela mesma escavou num paredão da serra de Borborema. O grupo que abria caminho e piqueteava na vanguarda perdeu-se para sempre: ultrapassou os limites do mapa do engenheiro. Só foi encontrado o grupo que passou três anos trabalhando em círculos, atapetando de poeira os próprios rastros e dando acabamento naquele moto perpétuo. Os engenheiros também nunca mais apareceram”.
GERALDO MACIEL é membro do Clube do Conto da Paraíba.
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