segunda-feira, 28 de agosto de 2006

Autores do Clube do Conto: Antonio Mariano (1)

Clube do Conto

Moção de protesto contra o contista Antonio Mariano

Imensa asa sobre o dia
Antônio Mariano
Coleçao Tamarindo, Dinâmica Ed. João Pessoa, 2006.


Nós, abaixo assinados, protestamos contra os maus-tratos infligidos pelo contista Antônio Mariano ao seu personagem Jailson em seu novo livro Imensa Asa sobre o dia.
Concordamos que tem muita criatura que sofre nas mãos do seu criador. Mas poucas sofrem tanto quanto Jailson nas mãos de Antônio Mariano. Em noventa e cinco páginas o pobre leva uma surra, confundido com um ladrão que ele mesmo perseguia; é tratado como uma criança invisível pelos pais; é demitido por justa causa sem justa causa; morre de uma porrada do próprio pai; morre envenenado pela tia que ele mesmo tentou um dia envenenar mas se arrependeu; morre outra vez picado por uma viúva negra que o tirou para dançar; fica com fome enquanto os outros comem – por via oral – sua namorada Maria Dulce; leva um sopapo entre o nariz e o beiço com o caroço de uma fruta atirado por uma menina que ele queria bem; é internado na Colônia Juliano Moreira por descobrir-se poeta; é responsável pelo desaparecimento de Alice, sua irmã, num poço que aparece de repente no meio do caminho. Por fim, Jailson morre definitivamente nas mãos de um amarelo, quando “o sol apontava no nascente espantando a sombra da noite, imensa asa sobre o dia.”

Imensa asa sobre o dia, da Coleção Tamarindo, é o título do livro de contos em que Antônio Mariano maltrata o pobre do Jailson. E faz isto com tamanha competência sádica que leva o leitor ao deleite, cooptado pelas astúcias do estilo e da imaginação do autor. Quanto mais sofre Jailson, mais goza quem lê Mariano. Sabemos que assim é a vida, pelo menos a vida que imita a arte, mas não precisava exagerar.
Além do mais, o autor nos engana ao se fazer de contista. O que esperar de um poeta que se lança aos contos? Que recheie seus contos de poesia, como um confeiteiro rechearia um pão; um sacoleiro, a sacola; um traficante, o fundo falso da mala. Um inspetor de alfândega competente não deixaria passar como simples prosa os contos de Imensa asa sobre o dia, cuidadosamente editado por Juca Pontes para a Editora Dinâmica. O próprio título do livro já denuncia a presença dos grãos finos da poesia no granulado da prosa. E quanto mais Antônio Mariano domina os dois ofícios, mais sofre o pobre do Jailson em suas mãos.

Por tudo isto, senhoras e senhores, eu vos convoco a assinar comigo esta moção de protesto, para que não se alastre entre a nossa juventude os pendores sádicos revestidos de uma prosa cavilosa e cativante, na esteira deste mau exemplo que nos dá o poeta e contista Antonio Mariano.

João Pessoa, 19 de agosto de 2006

Ronaldo Monte.

Autores do Clube do Conto: Ronaldo Monte (2)

Clube do Conto


Publicado em RASCUNHO, o jornal de literartura do Brasil - Curitiba, 28 de agosto de 2006
http://rascunho.ondarpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=25&lista=0&subsecao=0&ordem=956


O PÓ E AS BRASAS

por Suênio Campos de Lucena • São Paulo – SP

No novo romance de Ronaldo Monte, a memória é tratada como alegoria contra o apagamento das coisas


Memória do fogo Ronaldo Monte Objetiva 128 págs.

A Objetiva está lançando mais um volume da série Fora dos eixos. Após publicar os livros do gaúcho Paulo Scott (Voláteis) e "descobrir" a excelente escritora Ma. Valéria Rezende (O vôo da guará vermelha), freira que surpreende pela qualidade de sua prosa, a editora carioca edita agora o livro Memória do fogo, de Ronaldo Monte, 59, alagoano radicado na cidade de João Pessoa, Paraíba. Professor de psicologia, psicanalista, poeta e colunista do jornal Correio da Paraíba, Monte já publicou os títulos Pelo canto dos olhos (1983), Memória curta (1996), Tecelagem noturna (2000), Pequeno caos (2003) e World Trade Center (2004).

A idéia da série Fora dos eixos é bastante válida (tanto que nos perguntamos por que só agora estaria acontecendo) e merece todos os louros, sobretudo, por colocar no mercado brasileiro vozes que dificilmente ultrapassariam as cercanias de suas regiões, uma vez que, lamentavelmente, quase não há editoras com boa distribuição fora do eixo Rio - São Paulo. O que não quer dizer que os autores que residem nesse (tal) eixo gozem da glória e que seus livros se transformem instantaneamente em best-sellers. Ainda há uma infinidade de nomes que não chegaram às escolas, à academia, às indicações de vestibulares, adaptações, traduções, etc. Assim, o mais interessante é pensarmos sempre em como pulverizar mais e mais a produção de bens literários, fazendo-os chegar a um contingente cada vez maior de pessoas. Felizmente já existem muitos exemplos. Alguns autores como Rinaldo de Fernandes (que vem revelando muita gente de talento como na recente coletânea Contos cruéis, Geração Editorial), Ruy Espinheira Filho e tantos outros, além de periódicos como Et cetera (Curitiba), Continente multicultural (Recife), Correio das artes (João Pessoa) e o próprio Rascunho vêm fazendo isso, todos com alcance nacional. Isso para não falarmos na febre do momento, que são os blogs e sites literários.

Em Memória do fogo temos, entre outros, um canavieiro, um lanceiro de maracatu, um padeiro, jovem vidente, um órfão e um mecânico, distribuídos em sete episódios (Cara preta, Caboclo de lança, Boca de forno, Massapê, Meia luz, Darque e Cinzas), personagens imersos numa espécie de névoa, de sonho, isso num universo claustrofóbico, de almas e contextos áridos e que nos remete vagamente à armadura de Vidas secas, o célebre romance de seu conterrâneo Graciliano Ramos. Não que Memória do fogo tenha forte conteúdo regionalista (a despeito de se passar numa região que lembra o sertão, a caatinga, um canavial), mas porque é possível ler suas histórias independentemente, apesar de serem interligadas. Aos poucos, o leitor perceberá que são blocos intermediários que se montam, mosaicos que ganham muito se lidos em conjunto. Cada "episódio" conta um pouco da vida de cada personagem. Aos poucos, eles se aproximam. E se encaixam.

O entrechoque entre a urbis e o rural, a idéia de desenvolvimento em paralelo ao sujo, à pobreza, à miséria e ao pitoresco são elementos que convivem fortemente numa linguagem que busca certa eufonia musical ("Menino feio me proteja, que mesmo eu não sendo negro - que eu não sei que cor eu tenho - preciso de proteção nessa hora tão escura. Menino feio, que eu não sei quem é você, me livre dessa agonia, que eu não queria ficar aqui", pág. 34), uma poeticidade para além do simples desenrolar de fatos. Esforços do autor em alcançar uma linguagem tersa, pois não há diluição nem fragmentação e, embora em alguns momentos o texto possa parecer rebuscado, isso não acontece porque o livro está amparado em linguagem e expressões populares, reforçando o conhecimento do autor nas guiadas, chapeados (carregadores), jiraus e demais vocábulos típicos dos sujeitos, objetos e ambientes retratados. Pode-se dizer que o falar popular está representado com intensa força dramática. Talvez por isso, o livro não tenha gordura nem excessos. Ao contrário, Memória do fogo vai do pungente gracilianismo à densidade e dicção cabralinas.

Leitura da alma

A noção de memória é colocada em prática por Ronaldo Monte no sentido de herança, verdade. No capítulo inicial/primeira história, por exemplo, enquanto aguarda um trem, um menino começa a "descobrir" alguns segredos dos outros. Ele lê/vê a alma das pessoas, o que elas realmente sentem, muito além das idéias de passado e futuro elencados pelos ciganos e sensitivos. Uma leitura da alma e de aura, da verdade escondida do outro.

Memória aqui é alegoria que luta contra o apagamento das coisas, a morte, o esquecimento. Em Teogonia, de Hesíodo, Jaa Torrano relata que a memória é a quinta união de Zeus. Depois de suas uniões com Mêtis, Thémis, Eurynóme e Deméter, Zeus se junta à Memória. Na lista de suas esposas, Memória está entre Deméter e Lete. Alétheia, explica Adélia Bezerra de Meneses, "é o não esquecimento: alétheia (a, ou alfa privativo + letheia, de lethe = esquecimento)". Para os gregos, memória é uma deusa, Mnemosyne, que, em sua união com Zeus, gerou nove musas em nove noites passadas. Elas lembram aos homens a recordação dos heróis e seus feitos e, sobretudo, inspiram os poetas.

Em Mito e pensamento entre os gregos, Jean-Pierre Vernant destaca a noção de "força infernal" do esquecimento, que surge num contexto carregado de negatividade, destruição, desterro, abismo. A idéia de esquecimento associada à morte ocorre a partir da união entre Mnemosyne (memória) e Lethe (esquecimento):

Léthe, Esquecimento, associada a Mnemosyne e formando com ela um par de forças religiosas complementares. Antes de penetrar na boca do inferno, o consultante, já submetido aos ritos purificatórios, era conduzido para perto das duas fontes chamadas Léthe e Mnemosyne. Ao beber na primeira, ele esquecia tudo da sua vida humana e, semelhante a um morto, entrava no domínio da Noite. Pela água da segunda, ele devia guardar a memória de tudo o que havia visto e ouvido no outro mundo... Como a mãe das Musas, ela tem a função de "revelar o que foi e o que será". Mas, associada a Léthe, ela se reveste do aspecto de uma força infernal, agindo no limiar do além-túmulo.

Ressaltando que a evocação do passado não faz reviver o que não existe mais, ou seja, a simples rememoração, a volta ao tempo não faz "esquecer" nem apaga a realidade, Vernant lança (e procura responder) uma questão que, aliás, persegue boa parte dos estudos sobre memória: "Qual é então a função da memória? Não reconstrói o tempo: não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e do além ao qual retorna tudo o que deixou a luz do sol".

Vendo o esquecimento como cativeiro ("o cativeiro e o esquecimento de Matyendranâth constituem um motivo pan-indiano. Os dois infortúnios exprimem, plasticamente, a queda do espírito... no circuito das existências e, conseqüentemente, a perda de consciência de Si"), Mircea Eliade afirma no ensaio Mitologia da memória e do esquecimento (no livro Aspectos do mito) que
na medida em que é "esquecido", o "passado" é identificado com a morte; ressaltando que a literatura indiana utiliza imagens de prisão, ignorância e esquecimento para representar a condição humana; e, ao contrário, imagens de liberdade, memória e recordação para exprimir a abolição (ou a transcendência) da condição humana, a liberdade, a libertação.

E é exatamente isso o que buscam os personagens de Ronaldo Monte. Todos trazem essa crença de não esquecer a memória do fogo para não serem vencidos, não se rebaixar, apesar das agruras de suas existências.

O fogo é a marca principal que os faz agir - é a memória de nossos antepassados diante da aparente surpresa da combustão emanada pelo bater de pedras ("o que tem para lembrar um homem que entregou sua memória ao fogo? A memória do fogo. O que o fogo deixou de si nos buracos da memória que ele mesmo roeu", pág. 15). Eles passam essa força (que nunca seca), a fim de enfrentar os medos primitivos da morte, do frio, da fome e da solidão que acompanham o homem: "Não, eu não vou morrer!". É o que parecem nos dizer seus personagens. Eles carregam essa memória de luta, refletindo a condição humana de pobres seres desamparados e fadados à destruição.

No lamento do aspirante a caboclo de lança ("Queria ser caboco de lança e o feitiço da cachaça e da mulher não deixou. Queria amar uma mulher e seu Zé não deixou. Agora estou aqui, debaixo desse sol, cercado por essas canas, indo não sei pra onde, com um camarada que sabe quem eu sou, mas não me diz", pág. 44), culpado e só, não há derrota, mas constatação - é preciso fazer algo urgentemente; é preciso lutar para não se apagar. Assim também é o lamento da protagonista de Darque: "Só me caso quando puder ter um fogão a gás" (pág. 96). Tudo conflui para esta memória de dor, de exploração, de tristezas e misérias abismais, mas ainda assim não irreversíveis.

Romance quase todo composto por imagens, o elo maior que une os fios e teias dessa gente sofrida, para além da memória, é esta lembrança do fogo, lembrança que não se apaga, não se esquece, esta memória do fogo, mesmo que no fim (vale destacar que não há começo nem fim nessa(s) história(s) de Ronaldo Monte) restem apenas o pó, as brasas, ou melhor, as Cinzas, como nos lembra o autor em seu último texto.

Sobre o autor: Ronaldo Mote é alagoano radicado na cidade de João Pessoa (PB). É professor de psicologia, psicanalista, poeta e colunista do jornal Correio da Paraíba. Autor dos livros Pelo canto dos olhos, Memória curta, Tecelagem noturna, Pequeno caos e World Trade Center.

Autores do Clube do Conto : Ronaldo Monte (1)

Clube do Conto
em no mínimo TODO PROSA 24/06/06
http://todoprosa.nominimo.com.br/?p=81

Por Sérgio Rodrigues

Primeira mão

Ronaldo Monte: ‘Memória do fogo’

“Memória do fogo” (Objetiva, 128 páginas, R$ 27,90), de Ronaldo Monte, é o terceiro título da coleção Fora dos Eixos, que já lançou “O vôo da guará vermelha”, de Maria Valéria Rezende, e “Voláteis”, de Paulo Scott. A coleção pretende, nas palavras escolhidas pela editora, “buscar a qualidade literária fora do eixo Rio/São Paulo”. O ponto de partida é lá um tanto questionável: as idéias de centro e periferia andam embaralhadas pela internet, e a velha convicção de que existe um mundão de talento inexplorado fora do “eixo” anda cada vez mais parecida com um mito. Mesmo assim o resultado da coleção tem sido mais que animador. “Memória do fogo” não é um livro fácil. Regionalista e intimista ao mesmo tempo, tem uma prosa de alta densidade poética dentro da qual a narrativa avança com lentidão de sonho. Vale a pena embarcar na viagem porque Ronaldo Monte, nascido em 1947, psicanalista alagoano radicado em João Pessoa, tem voz própria e um admirável domínio da linguagem. Qualidades incomuns dentro ou fora dos eixos.
Foi então que viu pela primeira vez o que nunca queria ter visto. Via as pessoas por dentro. Não as suas carnes, não as suas tripas, não seus esqueletos, nem o azul das veias carregadas do vermelho de seu sangue. Via o que não sabia dizer. Não era bem uma luz, nem parecia uma cor, lembrava a visão de um som, o granulado de um cheiro. Era mais uma impressão, como se a marca da alma do outro fizesse uma marca na sua própria alma. E esse não saber dizer era o que mais o agoniava.
O povo fez uma roda em volta dele. Todo mundo parava para ver o menino de olhos arregalados, olhando assustado para cada rosto, com o que via por trás de cada rosto. Que é que está vendo, menino, me olhando desse jeito? Estou vendo uma mancha escura no lugar do seu coração. A senhora deve ter muita raiva de alguém. Deve ser de algum homem que lhe deixou. O povo começou a rir. Todo mundo sabia que aquela mulher tinha sido deixada há muito tempo por um noivo que foi embora com outra. A mulher teve raiva e saiu apressada, amaldiçoando o menino. O menino é adivinho, o menino é adivinho, a notícia se espalhou de ponta a ponta da rua. A roda aumentou, o círculo em volta dele ficou mais apertado. Sua respiração foi ficando mais difícil. Para não morrer sufocado, começou a olhar para cada pessoa e a dizer, com a voz engrolada, não mais o que via, e sim o que sentia na cara e no corpo dos outros. O senhor roubou seu irmão, esse aqui deu na cara da mãe, essa aqui se perdeu com o patrão, esse outro não pensa em mulher, essa outra matou um anjinho… E as pessoas adivinhadas saíam correndo e dizendo nomes feios com o menino. As pessoas desconfiadas do que poderiam ouvir cuidaram de sair dali antes que a verdade de dentro lhes fosse atirada na cara, na frente dos outros.
Até que uma hora só ficaram cinco pessoas. Cinco não, seis, pois eram quatro homens e uma mulher com uma menina no colo, os olhos das duas meio desencontrados, quase zarolhos, fazendo sentir uma nesga de pena. Os outros, reparando bem, não eram homens feitos. Metidos no trabalho da palha da cana ou no calor da moenda da usina, seus corpos atarracados pareciam de homens, pois ninguém ali crescia muito, era difícil distinguir pelo tamanho um homem de um menino. Mas a cara deles era de menino. Cara de quem ainda espera pelo tempo. E estavam ali para saber o que o tempo havia de lhes dar. O menino olhou de um em um e foi sentindo um aperto no peito. Era difícil dizer o que via. Porque a bem dizer não via. Umas manchas se mexiam no espaço pouco iluminado entre ele e cada um, como a pedir me diga. E ele não sabia dizer. Olhou mais, olhou muito e aos poucos as manchas foram tomando sentido. Mas as palavras, as palavras que as manchas pediam, não se formavam no peito do menino, não subiam pela sua garganta, não ferviam em sua boca como as que cuspiu na cara dos primeiros adivinhados. Olhou primeiro para a mulher com a menina e não viu nada separando as duas. Eram uma coisa só, como se tivessem um só destino. Só no fim, sentia, alguma coisa ia quebrar em muitos pedaços o que agora ele via inteiro. No primeiro menino viu uma lança enfeitada de fitas espetando seu peito. Depois viu um com a cara vermelha de frente para o fogo. Numa cara de menino com dois olhos viu a cara de um homem com um olho só. Num outro, viu um corpo coberto de uma lama cinzenta, parecendo a armadura de São Jorge rachada pelo sol. Não sabia direito o que estava vendo. Baixou a cabeça e disse: não estou vendo nada não, minha gente, vão embora. A verdade da gente ainda está pra se fazer. Disse assim, da gente, sem saber direito por que se botava no meio deles. Nunca tinha visto aquelas pessoas, mas era como se fossem seus irmãos.

Publicado por Sérgio Rodrigues - 24/06/06 12:01 AM

Autores do Clube do Conto: Ronaldo Monte (1)

Clube do Conto

Publicado em NO MÍNIMO / TODO PROSA
http://todoprosa.nominimo.com.br/?p=81

Primeira mão

Ronaldo Monte: ‘Memória do fogo’

“Memória do fogo” (Objetiva, 128 páginas, R$ 27,90), de Ronaldo Monte, é o terceiro título da coleção Fora dos Eixos, que já lançou “O vôo da guará vermelha”, de Maria Valéria Rezende, e “Voláteis”, de Paulo Scott. A coleção pretende, nas palavras escolhidas pela editora, “buscar a qualidade literária fora do eixo Rio/São Paulo”. O ponto de partida é lá um tanto questionável: as idéias de centro e periferia andam embaralhadas pela internet, e a velha convicção de que existe um mundão de talento inexplorado fora do “eixo” anda cada vez mais parecida com um mito. Mesmo assim o resultado da coleção tem sido mais que animador. “Memória do fogo” não é um livro fácil. Regionalista e intimista ao mesmo tempo, tem uma prosa de alta densidade poética dentro da qual a narrativa avança com lentidão de sonho. Vale a pena embarcar na viagem porque Ronaldo Monte, nascido em 1947, psicanalista alagoano radicado em João Pessoa, tem voz própria e um admirável domínio da linguagem. Qualidades incomuns dentro ou fora dos eixos.
Foi então que viu pela primeira vez o que nunca queria ter visto. Via as pessoas por dentro. Não as suas carnes, não as suas tripas, não seus esqueletos, nem o azul das veias carregadas do vermelho de seu sangue. Via o que não sabia dizer. Não era bem uma luz, nem parecia uma cor, lembrava a visão de um som, o granulado de um cheiro. Era mais uma impressão, como se a marca da alma do outro fizesse uma marca na sua própria alma. E esse não saber dizer era o que mais o agoniava.
O povo fez uma roda em volta dele. Todo mundo parava para ver o menino de olhos arregalados, olhando assustado para cada rosto, com o que via por trás de cada rosto. Que é que está vendo, menino, me olhando desse jeito? Estou vendo uma mancha escura no lugar do seu coração. A senhora deve ter muita raiva de alguém. Deve ser de algum homem que lhe deixou. O povo começou a rir. Todo mundo sabia que aquela mulher tinha sido deixada há muito tempo por um noivo que foi embora com outra. A mulher teve raiva e saiu apressada, amaldiçoando o menino. O menino é adivinho, o menino é adivinho, a notícia se espalhou de ponta a ponta da rua. A roda aumentou, o círculo em volta dele ficou mais apertado. Sua respiração foi ficando mais difícil. Para não morrer sufocado, começou a olhar para cada pessoa e a dizer, com a voz engrolada, não mais o que via, e sim o que sentia na cara e no corpo dos outros. O senhor roubou seu irmão, esse aqui deu na cara da mãe, essa aqui se perdeu com o patrão, esse outro não pensa em mulher, essa outra matou um anjinho… E as pessoas adivinhadas saíam correndo e dizendo nomes feios com o menino. As pessoas desconfiadas do que poderiam ouvir cuidaram de sair dali antes que a verdade de dentro lhes fosse atirada na cara, na frente dos outros.
Até que uma hora só ficaram cinco pessoas. Cinco não, seis, pois eram quatro homens e uma mulher com uma menina no colo, os olhos das duas meio desencontrados, quase zarolhos, fazendo sentir uma nesga de pena. Os outros, reparando bem, não eram homens feitos. Metidos no trabalho da palha da cana ou no calor da moenda da usina, seus corpos atarracados pareciam de homens, pois ninguém ali crescia muito, era difícil distinguir pelo tamanho um homem de um menino. Mas a cara deles era de menino. Cara de quem ainda espera pelo tempo. E estavam ali para saber o que o tempo havia de lhes dar. O menino olhou de um em um e foi sentindo um aperto no peito. Era difícil dizer o que via. Porque a bem dizer não via. Umas manchas se mexiam no espaço pouco iluminado entre ele e cada um, como a pedir me diga. E ele não sabia dizer. Olhou mais, olhou muito e aos poucos as manchas foram tomando sentido. Mas as palavras, as palavras que as manchas pediam, não se formavam no peito do menino, não subiam pela sua garganta, não ferviam em sua boca como as que cuspiu na cara dos primeiros adivinhados. Olhou primeiro para a mulher com a menina e não viu nada separando as duas. Eram uma coisa só, como se tivessem um só destino. Só no fim, sentia, alguma coisa ia quebrar em muitos pedaços o que agora ele via inteiro. No primeiro menino viu uma lança enfeitada de fitas espetando seu peito. Depois viu um com a cara vermelha de frente para o fogo. Numa cara de menino com dois olhos viu a cara de um homem com um olho só. Num outro, viu um corpo coberto de uma lama cinzenta, parecendo a armadura de São Jorge rachada pelo sol. Não sabia direito o que estava vendo. Baixou a cabeça e disse: não estou vendo nada não, minha gente, vão embora. A verdade da gente ainda está pra se fazer. Disse assim, da gente, sem saber direito por que se botava no meio deles. Nunca tinha visto aquelas pessoas, mas era como se fossem seus irmãos.

Publicado por Sérgio Rodrigues - 24/06/06 12:01 AM

Autores do Clube do Conto: Geraldo Maciel

Clube do Conto
Estranhas criaturas em cenário desacertado

Cecília Zokner [22/07/2006]
www.parana-online.com.br

A primeira edição, com data de 1995 e pela Editora Rio Fundo, do Rio de Janeiro, esgotou e, dois anos depois, Aquelas criaturas tão estranhas foi, novamente, publicado pela Editora Manufatura de João Pessoa: pequeno volume de agradável manuseio, que reúne vinte e um contos de Geraldo Maciel, engenheiro civil que se revela um exímio contador de histórias. Sua galeria de personagens é instigante. Nela, embora alguns se abriguem, muito bem, sob o título do livro – o pai e seus dois filhos se refugiando num lugar inóspito, as três irmãs possuidoras de poderes misteriosos, Aldonário e suas mágicas deploráveis, Lezama, o bonequeiro que, embriagado, destruía os seus bonecos – outros não estão longe dos humanos que lhe serviram de modelo e, quer se queira ou não, ainda vicejam por esse país afora: Adãozinho que, na cidade, exercia “o férreo poder sobre várias cabeças de gado e gente”; o delegado que a enxaqueca fazia lembrar os “serviços” que fizera; o velho Pompeu que a vida inteira trabalhou fazendo estradas e se conforma com uma aposentadoria de “três tostões furados”; Agrípio que não conseguiu, pela miséria em que viveu, criar os filhos que tivera; o preso por ter matado mulher e filhos porque não podia, sequer, alimentá-los.
Obediência filial, cobiça, o drama da mulher, relações amorosas inusuais, autoridade arbitrária e desmedida, solidão, irreversível pobreza, ensejam relatos que testemunham a realidade do país ou ultrapassam as fronteiras do real para se aproximar do fantasioso de um moderno conto de fadas, para palmilhar caminhos delineados pelo sobrenatural. Universos que se recriam numa expressão que oscila entre o lirismo e a troça e se constrói com hábil e sutil manejo de um conhecedor de seu ofício.
Vozes anônimas como a da mulher do conto “Meus meninos” ou a do homem que “O que posso lhe contar?” que uma vida paupérrima leva à situações extremas. O sofrimento de quem deve – “desgraça silenciosa” – comerciar o seu corpo. E disso não apenas ter grande pejo como consciência de que é “surrupiado de uma outra vida” quase tão miserável quanto a sua, “esse dinheiro sebento e amarrotado” que recebe para não morrer de fome ainda que os bocados amarguem a boca e façam “marejar os olhos de lágrimas”.
Dirigida a uma senhora que o fora visitar na cadeia, a confidência iniciada com a pergunta que dá o título ao conto “o que posso lhe contar?” que encadeia as outras: “A senhora conhece o interior? Já viveu por lá? Sabe o que é uma seca?” Repostas que ele mesmo dá e que se referem a viver em chão alheio, em casa alheia, à injustiças, a trabalhar “de sol a sol”, “de inverno a verão” e comer pouco “para não ficar devendo ao patrão”. E, num crescendo, o testemunho de uma sobrevivência na miséria: a fome, o acirrado desespero de ser incapaz de supri-la, a louca decisão: “A mulher me olhou como quem já sabia o que eu ia fazer e tenho certeza que até pedindo para que eu fizesse logo”.
Contrapondo-se ao doloroso viver – martírio sem redenção – que tais vozes, perturbadoras e terríveis, afirmam existir, as seqüências que revelam situações tão descabidas que pareceriam uma invenção trocista não fossem as já conhecidas trapalhadas com que os governos subdesenvolvidos aquinhoam o seu povo: engenheiros do governo – “Pensavam que a terra era um pedaço de papel colorido e traçaram um risco preto de um ponto a outro” – a determinar, planejar, decidir tarefas e rumos, explicar muito, para fazer uma estrada que resulta em nada. Porque os “trechos se trespassaram com distância de léguas. Uma turma foi detida quando, já na Bahía, se preparava para demolir uma igreja que o imperativo da engenharia mandava demolir; uma outra turma desapareceu num túnel que ela mesma escavou num paredão da serra de Borborema. O grupo que abria caminho e piqueteava na vanguarda perdeu-se para sempre: ultrapassou os limites do mapa do engenheiro. Só foi encontrado o grupo que passou três anos trabalhando em círculos, atapetando de poeira os próprios rastros e dando acabamento naquele moto perpétuo. Os engenheiros também nunca mais apareceram”.

GERALDO MACIEL é membro do Clube do Conto da Paraíba.

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Romeiros (Clube do Conto representado na FLIP)

Sem rumo certo, vão e vêm de cabeças baixas. Seus corpos ondulam numa coreografia sonâmbula. Sozinhos, aos pares ou em pequenos bandos, dão alguns passos e param. Só aí se vê que não é de tristeza a expressão de seus rostos. É de um certo êxtase, de quem não acredita de fato que está ali. Logo voltam a olhar para o chão e a caminhar lentamente sobre as pedras. São os romeiros de Parati, numa insólita procissão em louvor da palavra. A pluralidade das vozes denuncia: estão ali para a Festa Literária Internacional de Parati, a Flip. O comportamento estranho entre o cabisbaixo e o êxtase deve-se ao calçamento irregular feito de pedras no tempo da colônia. É impossível andar olhando para frente ou para os lados. É preciso parar para poder ver as casas, as galerias, as livrarias, os bares e botecos que disputam nossos olhos. É parado também que se vê o passar do tempo sobre o lugar. E somente parados podemos procurar o olhar do outro com quem compartilhar o deslumbramento. O Clube do Conto de João Pessoa estava lá. Na noite de quinta-feira, dia 10 de agosto, no Che bar, fizemos uma autêntica farra literária paraibana, batizada de Parathyba. Vendemos livros, sorteamos livros, demos muitos livros. O bar estava lotado. Muita gente estava lá para conhecer a turma daquela freira da Paraíba que tinha feito o maior sucesso na mesa de abertura da Festa, na manhã daquele dia. E foi a própria Valéria Rezende que apresentou o Clube.
Valéria, Barreto, Marília, Suênio Campos e eu erramos como romeiros pelas ruas de Parati. Fomos festejar a palavra. Cabisbaixos algumas vezes. Em êxtase na maior parte do tempo pela beleza da polifonia.
Ronaldo Monte