segunda-feira, 16 de março de 2009

Autores da Semana (1)

Semanalmente, ou quinzenalmente, ou, no máximo, mensalmente, publicaremos contos dos participantes do Clube do Conto. Estreando esta nova seção do blog: André Ricardo Aguiar.

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André Ricardo Aguiar é leitor de todo tipo de histórias, mas quando pode, se realiza entre o terror e o humor. Publicou poesia, cometendo alguns livros, mas não satisfeito, cravou um livro de crônicas de viagem e outros dois para as crianças. Com o Rato que roeu o rei (Ed. Rocco), que foi selecionado pelo PNBE, iniciou sua mais nova fase. Do seu baú preguiçoso, ainda guarda inéditos outro livro de poemas, contos e umas bolinhas de naftalina.

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Carmela

Quando deu por si, veio uma preguiça infinita. Estava contido espantosamente em forros de veludo, chumaços de algodão no nariz, um descabimento em madeira talhada. A princípio, o ponto de vista era o telhado. Estava morto, mas não sabia que estava. Riu-se do fato. E novamente consegui tirar essa equação: solidão, noves fora, ironia. Só o pensamento, esse motor metafísico, lembrou-lhe que estava no seu próprio velório. O que poderia fazer? Os parentes, amigos e condolentes tricotando conversas a meio tom e pondo em movimento a máquina do óbvio viver.

Teve medo de se mexer, mesmo com o rabo do olho: pois não seria de bom tom sair da etiqueta do defunto. E se causasse um movimento involuntário ao cadáver? Sim, todos estavam ali. Ouvia vozes, chorinhos abafados, murmúrios. A maior sensação era a falta de costume: pouco sentindo dos efeitos a que comumente chamamos emoções, não atinava com o ambiente. A sala, tão familiar, agora parecia também um caixão onde cabiam, provisoriamente (no sentido figurado), seus cadáveres. Sua maior estranheza foi descobrir apenas a melancólica imagem de apagados seres. Eles se moviam numa espécie de ritual sem religião.

Vieram-lhe visões sobre o que seria o rosto furtivo e sagrado do nada, o ar rarefeito, o tipo de eternidade que lhe cabia. Não adiantou, sentiu-se mais só do que um verme. Mas nada, nada causou mais espanto do que descobrir, maravilhado, que podia, com sucessivos exercícios, ir saindo aos pouquinhos de si. Não foi tão fácil. A carcaça, para alívio seu, continuava numa moldura de coroas de flores e enjôo. Pôs uma perna desajeitadamente para fora, pôs a outra, espreguiçou-se e desceu do féretro. Ninguém notou. Via tudo de forma chapada, como se a fronteira entre a vida e a morte consistisse numa lente fosca. Teve uma sensação de que ia esbarrar no farmacêutico ou em Lázaro, dono da funerária, de que podia atravessar com relativo perigo a própria esposa, mas nada disso aconteceu. Um pouco cansado – afinal, horas antes tivera grande constrangimento e desperdício de energia enquanto agonizava. O movimento ganhava alguma novidade com ruídos de choros ou pequenos escândalos para os lados da cozinha. Algo ali estava lhe chamando a atenção, como uma fluida sintonia de rádio, mas não soube precisar. Saiu andando a esmo, deixando o seu corpo em stand-by

Afinal, muito chato ficar mofando ali. Estava até meio decepcionado pela correção ética do velório. Correu dali, atravessou paredes como se fossem gelatina, foi bater nos lados do quintal para acariciar, sem tocar, seu dálmata. Em algum ponto da casa um grupo de marmanjos contava uma anedota enquanto numa escala menor, talheres e copos eram lavados com certa displicência. Sabia que o crédito da eternidade já estava no bolso, mas, segundo os padrões ainda vigentes, não deveria descuidar de suas obrigações de defunto, deveria resignar-se e tomar seu lugar, numa postura idêntica ao funcionário que toma posse de uma mesa e faz o que lhe pedem as tais forças superiores.

Estava disfarçando o nervosismo. Essa etapa intermediária entre sair da vida e pular para o desconhecido parecia um vestibular ou uma sala de espera de dentista. O sentimento de uma presença alarmava-lhe o espírito. Lembrou um trecho que lera de um livro de filosofia de almanaque: os acontecimentos de uma vida, mesmo comezinhos, poderiam vir a ser uma semente para a morte ou o que quer que esteja do outro lado. Alguma mancha afetiva de sua vida estava ali, dizia a sua recém-clarividência. E era verdade, o que pôde comprovar ao tomar o rumo do centro do velório.

Quando voltou à sala, teve uma surpresa: num canto, um pouco pálida e reservada, estava Carmela, uma prima distante que lhe devotara meteórica paixão. Não tinha dado certo e os desvios familiares mudaram a rota do destino de ambos. Agora a prima apareceu ali, um olhar entre adormecido e mórbido. Causou certo incômodo o fato de que, se ainda não falhava a memória, Carmela tinha morrido de tifo em 1957 aos dezoito anos. Estava enterrada no mesmo cemitério onde jazia a família e que seria o destino do seu corpo.

Mas agora bateu a dúvida. Tinha morrido ou não tinha morrido? Não era Amelinha, parente da parte paterna, que tinha adquirido a malfadada doença? Mas também jurava de pés juntos que ali estavam os traços inconfundíveis da prima: sua obstinação velada, seu ar meio distante, o que dava a sensação para muitos de que Carmela não tinha nascido para os dissabores do mundo – e que em verdade pouco se lhe dava viver aventurosamente. Viveu, sim, para amar alguém uma só vez toda a vida. E sua presença ali corroborava o seu estilo.

Um detalhe furtivo não lhe escapou: a prima segurava, com muito zelo, um objeto, talvez um pedaço de papel. Olhava de forma fixa para o caixão e parecia prestes a burlar a vigilância dos presentes, mas só parecia prestes. Mostrava-se consolada e esperançosa.

Estava nessas elucubrações quando sentiu a pontada metafísica, como que um cifrado chamado para tomar o seu lugar. Assumiu sua responsabilidade, embora com certa relutância, pois desejara falar com a prima, mesmo que como leve brisa assombrada. Acomodou-se o melhor que pôde no caixão e já ia afundando numa morna inexistência quando sentiu que lhe fechavam a tampa. Pela última fresta de luz mortiça uma mão pálida se insinuou e por entre as flores depositou um delicado envelope. Era um bilhete, e numa letra tremida, quase apagada, estava escrito:

CARMELA

JAZIGO 3547, À SOMBRA DO FÍCUS.

6 comentários:

Anônimo disse...

André. Já conhecia este texto. Mas amei repetir a leitura. Muito bom mesmo. Abraço.
Dôra Limeira

Anônimo disse...

É muito agradável a postagem do conto marcando a presença do autor. Essa ação fortalece o blog e nos deixa sempre atualisado com a obra da(o)s colegas.

Anônimo disse...

Nossa adorei o texto!!!
Q leitura maravilhosa!!!
Parabéns!!!
Abraço, Priscila Soares

Humberto Ilha disse...

Parabéns ao Clube e ao André, um autor pronto. Lendo o conto Carmela é que vejo esperança na literatura. André, persista que você sabe escrever. Saudações literárias de Humberto Ilha.

Anônimo disse...

André. Gostei muito do texto!
Ele nós faz refletir sobre aa narrativas.
Abraços,
Monique Botelho

Gorette Silva disse...

rs muuito legal este conto. tao singela a carmela...tao singelo o bilhetinho...a ideia...
eu queria ter escrito...