terça-feira, 23 de agosto de 2011

Dôra Limeira (Cartum + Conto)

DÔRA LIMEIRA nasceu em João Pessoa no dia 21 de abril do século passado. Graduou-se e especializou-se em História na UFPB. Depois que se aposentou enquanto professora, fez teatro, foi uma das fundadores do Grupo Teatrália. Depois enveredou pela Literatura, tendo publicado seu primeiro livro aos 60 anos, o livro de  contos "Arquitetura de um Abandono". Por causa desse livro, recebeu o prêmio de Revelação Literária 2003, promovido pelo Suplemento Literário Correio das Artes, do jornal A União. Em 2002, participou do Concurso Talentos da Maturidade (promovido pelo Banco Real) com o conto "Não há sinais", concorrendo com 10.338 inscritos em todo o país. Foi incluída entre os vinte melhores concorrentes. Como tal, teve seu conto publicado na antologia "Todas as estações", pela editora Peirópolis. Em 2005 publicou seu segundo livro de contos, o "Preces e Orgasmos dos Desvalidos". Dôra Limeira é uma das fundadoras do Clube do Conto da Paraiba, que já completou sete anos de existência e que já publicou uma antologia "Histórias de sábados". Dôra Limeira publicou mais dois livros de contos, a saber: "O Beijo de Deus" (2007) e "Os gemidos da Rua" (2009). No momento, dispõe de dois livros inéditos, esperando oportunidade para publicação.

***

EIS O QUE RESTA DE MIM

Você não sabe de coisa alguma. Fui obrigada a me afastar e nada lhe expliquei. Dobrei a esquina sem adeus nem acenos de até logo. Eu sofria muito. Amaldiçoava tudo quanto eu tinha de mais sagrado, meus anjos, meus santos, meus pais. Mas não derramava uma só lágrima. Ao contrário, eu ria às pampas. Perguntavam-me se eu estava louca. Não, não estou louca, eu respondia. Mas devo confessar que, em meu íntimo, eu desatinava, perdia meu rumo. Disparava num riso histérico, escrachado. Somente eu e Deus sabíamos o quanto me angustiava aquela situação. Deus sabe o quanto eu cortava minha pele até não suportar. Era doloroso. Eu sangrava, gemia, gritava e arrancava minhas vestes. Era tanta a dor que eu chegava a trincar os dentes. Parecia que um tumor maligno estava sendo extirpado de mim, sem anestesia.

Custou-me muito, mas decidi ir embora. Não me pergunte sobre as razões de meu gesto. Não sei, não tenho como lhe responder. Nos primeiros tempos nosso companheirismo foi muito bom, parecia não ter fim. Você se desdobrou em delicadezas, eu me desdobrei em compreensão e paciência. Eu pensei que aquele céu duraria por muitas eternidades. Mas, infelizmente, lamento, não deu. As engrenagens da vida foram mais fortes do que nós. Fomos impotentes perante a rotina, o tédio, o marasmo. E tudo se desgastou, tudo se transformou em sofrimento. Aquilo que parecia amor para sempre se consumiu, se destruiu entre bebedeiras e discussoes à toa.  Com o tempo, você se transformou. Permitiu que as crises tomassem conta de seu corpo e sua alma. Voce mudou o comportamento, pareceu-me ser outra pessoa.

Ao longo dos anos, aos poucos, você se atrasou em seus compromissos comigo. Embriagado, você muitas vezes me beijou e me bateu, depois você chorou. Eu tive muita paciencia. Nao me lembro de quantas vezes coloquei você na cama, limpei vômitos, urinas e fezes no quarto, no corredor da casa,  no banheiro. Mesmo assim, acreditei em cada promessa, cada propósito de mudança. Você sempre me prometeu coisas depois de suas bebedeiras, e sempre acreditei. Eu preparei seu jantar, inventei pratos novos de vez em quando. Mas você sempre chegou tarde para a ceia, a comida esfriava e eu dormia no torpor da depressão. Se você me beijava com bafo de cerveja, eu acordava enojada, impaciente. Você disse muitas vezes eu te amo, mas repuxou meus cabelos e me bateu. Eu nunca tive o direito de comemorar qualquer coisa em casa, seja meu aniversário, aniversário das crianças, Natal ou qualquer outra confraternização. Sabe por que? Eu tive vergonha. Embriagado, voce não respeitou nem a presença de minhas amigas e de meus familiares. Sempre discutiu, disse palavrões, fez gestos obscenos. Em suas crises, você não considerou nossas crianças tão pequenas ainda. Minha mãe me chamou minha filha, volte para a casa de seus pais. Na casa de seus pais, ninguem bate em você, lá você é respeitada e estimada. Mas, naquele tempo, não tive coragem de tomar uma atitude.

E os dias, meses e anos foram se passando. Aquele 12 de dezembro amanheceu, o sol avançou e você não chegou. Levantei-me, fiz o café da manhã e encaminhei as crianças para a escola. Aguei o jardim, pus a ração do cachorro, lavei a louça, fiz uma coisa, fiz outra coisa. E você não chegou. Lavei roupa, esfreguei, enxaguei. O sol se colocou alto no céu, esquentou as visceras de meu juizo, esvaziou meus sentimentos, secou minha vontade de chorar. E você não chegou. Em busca de uma decisão, eu prossegui cortando minha pele, minha carne. Tudo em minha casa fedia, ora era cheiro de cachaça, ora de vômito, ora de fezes. Respirei fundo, inalei todos os maus cheiros do ambiente e resolvi. Fui embora levando meu corpo, minhas coisas, minha pequena vida. Mal dobrei a esquina, já senti saudade das crianças. Engoli no seco e atravessei a rua na faixa de pedestre. Nunca mais tive notícias das coisas de meu passado, as crianças, o marido, meus pais, o guarda roupa que aninhou meus segredos durantes muitos anos. Doeu, doeu muito. Mas hoje eu acredito que valeu. Cabelos grisalhos, hipertensão, diabetes e tosse crônica são as coisas que me restam. E um gato castrado roronando debaixo de minha cama.

(Inspirado no samba “Ex-amor”, de Martinho da Vila)

Nenhum comentário: