terça-feira, 2 de outubro de 2007

Naquele tempo


Maria Valéria Rezende

Ele era o alvo de todos os nossos olhares e devaneios. Não das esperanças, que não ousávamos. Tínhamos quinze anos. Ele, vinte e um. Muuuuuito mais velho que nós. Maior de idade, usava livremente uma suposta fortuna que herdou de um tio-padrinho. Era o único rapaz dessa idade que já tinha seu próprio carro e já fora esquiar nos Alpes. Incrível, naquele tempo. Isto era o de menos. Sim, tinha olhos verdes, uma covinha no queixo quadrado, era dourado de sol, campeão de tamboréu na praia e vice-campeão de tênis nas quadras. Aquelas pernas, aquele peito! E inteligentíssimo! Lia de tudo, olhava de cima, condescendente, para todos nós, o resto.
Era um gentleman culto e blasé. Estudava na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Ele fazia disso uma coisa assombrosa, caminhando com ademanes de quem portasse a capa preta de Coimbra. As capas pretas esfarrapadas que adorávamos e que periodicamente ocupavam, em revoadas, nossos sonhos adolescentes, quando se anunciava mais um navio com estudantes da universidade portuguesa atracando em breve em nosso porto. Era um tal de aprender os últimos fados que as rádios de nossa cidade meio lusitana repetiam todas as manhãs. Mas nem os estudantes de Coimbra, com suas vozes, suas histórias de touradas, nem suas guitarras ofuscavam o brilho de nosso galã.
Era isso. Um brilho que não nos cansávamos de olhar. À distância. Até que um dia ele veio e sentou-se na cadeira vazia junto à mesa em que sempre nos reuníamos num bar da praia, que ele sempre desprezara. Sentou-se, fez girar seu olhar distante dez centímetros acima de nossas cabeças, lançou um longo suspiro e disse:
- Já não agüento mais esta cidadezinha. Não há mais nada a descobrir aqui. Pequena demais, provinciana demais para mim, que tenho mais lembranças do que se tivesse mil anos.
Nem pensei. Saiu-me automaticamente, sem hesitação:
- Beaudelaire: J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans...
Já teria valido a pena o olhar de espanto que me cercou por todos os lados. Alguns segundos, a turma toda pôs-se a rir. Menos ele.
Durante um mês minha vida virou de ponta-cabeça.
Ele me cortejava, me assediava, aparecia todos os fins-de-semana com flores, caixas de bombons e livros de poetas franceses. Insistia para que fôssemos juntos ao clube, ao bar da praia, a qualquer lugar onde todos nos vissem, e pedia-me que lesse poemas, enquanto ele fumava seu Pall Mall acompanhando as volutas de fumaça com olhar sonhador e suspiros profundos. Aquilo era extremamente chato, mas eu não tinha como resistir.
Minha turma afastou-se de mim como seu eu tivesse contraído uma infecção contagiosa. Minha vida tornou-se um tédio, um verdadeiro spleen, eu poderia dizer, naquele tempo.
Uma tarde de sábado, depois de ouvi-lo dissertar exaustivamente sobre Le bateau îvre, tentando encontrar uma saída daquela armadilha, arrisquei um palpite qualquer sobre Rimbaud (bom e velho professor Bertrand!). Ele olhou-me absolutamente encantado. Esperei um elogio, mas, assim, sem mais nem menos, ele me insultou:
- Sabe porque é que eu gosto de você? Porque você tem uma cabeça de homem!
Levantei-me, indignada, agarrei minha bolsa e fui-me embora. Livrei-me dele para sempre.

Clube do Conto da Paraíba – setembro 2007 – mote: Insulto.
Ilustração: Egon Schiele. Obtida em helderpoeta@blogspot.com

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