A Sessão de Contos é um "programa" do nosso blog que exibe para todos os internautas um dos contos lidos nas reuniões de sábado do Clube.
Nesta semana, exibiremos um conto inédito, porém relativamente antigo, de Alfredo Albuquerque. Boa leitura!
* * *
PROTETOR LUNAR
Após tomar o prato de sopa, Clarissa foi ao banheiro, escovou os dentes e passou o protetor lunar. Saiu de casa com a lua cheia já se destacando entre os edifícios, embarcou num ônibus rumo à orla e chegou à praia que, como era de se esperar, estava lotada. Desconfortável com a cadeira dobrável e o guarda-lua, tratou de encontrar logo um espaço de areia onde pudesse esticar-se, próxima aos fiscais do zoocontrole que, numa noite como aquela, eram muitos. Caminhando pelo labirinto de toalhas de praia, sua pele incrivelmente branca e sem pelos atraiu olhares de inveja e aprovação, que ela, por timidez, tentou ignorar, até, enfim, encontrar um lugar para ficar. Esticou sua toalha na areia, botou os óculos de lentes amarelas e abriu o romance.
Leu por mais de uma hora, até começar a ficar incomodada com a leve coceira na pele, sinal de que o protetor lunar estava começando a perder seu efeito. Guardou o livro na sacola de nylon, se levantou e olhou para a água. Centenas de pessoas ocupavam a faixa mais próxima à areia, brincando com as ondas que se desfaziam ruidosamente. Mais à frente, após a arrebentação, encontrou o mar negro, denso, refletindo a luz da lua através de cintilações aleatórias que davam-lhe o aspecto de uma infinita pedra preciosa. E o confortável vazio. A ausência completa de gente. O enorme espaço aconchegante onde poderia ficar só, consigo mesma, envolvida pelo frio abraço da água que a preenchia e acalmava. Buscou com os olhos alguém que inspirasse confiança, talvez uma família convencional ou uma pessoa de idade, encontrou a família, e pediu que vigiassem suas coisas enquanto ia dar um mergulho.
Nadou mais de cem metros, afastando-se da praia, e deixou-se ficar por um tempo indeterminado suspensa na água, com o rosto voltado para o céu, tentando identificar constelações. Quando se cansou, nadou ainda um pouco mais e voltou à praia, preocupada com sua própria demora e a possibilidade de ter suas coisas abandonadas caso a família houvesse decidido ir embora. Ao se aproximar da areia percebeu uma aglomeração alguns metros à sua frente. Saiu da água, localizou seus pertences, agradeceu à senhora a gentileza e perguntou o motivo do rebuliço, enquanto espalhava no próprio corpo mais uma camada de protetor. Como imaginava, eram os fiscais do zoocontrole agindo. Consultou as horas no relógio guardado na bolsa e constatou que já eram mais de 23h.
Sem demonstrar curiosidade com o alvo dos fiscais, chamou um vendedor de chá branco gelado, comprou um pacote de biscoitos São Jorge e amenizou a fome, que já começava a se manifestar com a aproximação da meia noite. Por volta de 23h30, começaram a se intensificar as ações dos fiscais. Sentindo-se já íntima da senhora ao lado, puxou conversa, comentando que não entendia como algumas pessoas, apesar de todas as advertências, ainda se comportavam daquela maneira, recusando-se a se proteger. A senhora concordou e acrescentou que ela mesma, em sua família, já tinha vivido o drama decorrente do descuido com a luz da lua. Em uma noite como aquela, há três anos, havia perdido um de seus filhos, abatido pelos fiscais que agiram rapidamente assim que ouviram os primeiros uivos emitidos pelo garoto e constatarm o crescimento acelerado de pelos. Foi só a partir daí que ela conscientizou-se da importância das advertências do Governo e decidiu se livrar do preconceito contra o protetor, apesar de seus efeitos colaterais. Concordaram que seria melhor viver sem os tais efeitos. A senhora pediu licença para se juntar novamente ao marido e aos filhos que já demonstravam vontade de ir embora, e se despediram. Clarissa voltou para sua toalha, verificou no celular que havia uma chamada não atendida, leu mais um pouco, e fechou os olhos para cochilar debaixo do guarda lua.
À meia noite as transformações chegaram a seu auge. Em toda parte viam-se fiscais perseguindo animais amedrontados e enfurecidos que, em seu caminho de fuga desesperada deixavam um rastro de corpos agonizantes pisoteados, braços arrancados e cabeças decepadas. Acordada pelo barulho, Clarissa esboçou um começo de mau humor, mas se conformou ao refletir que aquele, afinal, era o preço que se pagava por escolher frequentar a praia naquele horário e, especificamente, numa noite de lua cheia. Aproveitou a vigília, leu por mais uma hora, depois foi à água, deu um mergulho rápido, juntou suas coisas e pegou o celular para retornar a ligação. Eduardo atendeu de imediato. Conversaram muito, rindo das circunstâncias que fizeram com que se conhecessem no dia anterior, embriagados, na pista de dança da boate lotada às três da tarde. Marcaram uma ceia para as duas e meia da madrugada e Clarissa, para deixar tudo claro desde o início, fez questão de ressaltar que já fazia uso constante do protetor lunar há cinco anos e, portanto, já não havia mais nenhum vestígio de desejo sexual em seu corpo. Eduardo riu alto ao telefone e disse que havia sido um dos pioneiros no uso do protetor e que, por isso, ela não devia se preocupar com atitudes desagradáveis por parte dele.
Ao desligar o celular, sorrindo da própria mentira, Eduardo foi ao banheiro, raspou os fios que haviam nascido desde a meia noite e repassou em sua mente os planos para o final de sua madrugada, com Clarissa a seu lado, debaixo da lua cheia.
João Pessoa, 7 de novembro, 2009
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