REGINA BEHAR nasceu em João Pessoa, gosta de arte em geral e literatura e cinema em particular. Se considera amadora em ambas as artes no dúbio sentido da palavra. Ensina história como profissão da qual gosta e lhe permite pagar contas, mas experimenta as artes por pura necessidade vital e deseja, do fundo da alma, um dia viver fazendo só isso, além de, obviamente, amar as pessoas que ama. Integra o Clube do Conto desde não sei quando, mas tem certeza de que Dorinha, Ronaldo ou Valéria podem atestar que ela é da velha guarda.
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O SEGREDO DE JULIA
Mauro e Julia viviam uma vida pacata de cidade do interior, numa casa com quintal grande, um cachorro, dois gatos e três crianças, duas meninas e um menino. Mauro era proprietário da Mercearia Fontes, e Julia dava um expediente de quatro horas na Prefeitura de Tocáia, um lugar perdido no mapa mundi.
Mas, por trás da aparente tranqüilidade da vida comum, sem sobressaltos e sem grandes projetos, um mal estar crescia entre eles, e tudo por causa do segredo de Julia. Era segredo porque ninguém sabia, só ela, e Julia se recusava sistematicamente a contá-lo. Dizia-lhe que não havia segredo algum.
Mas ele, Mauro, tinha absoluta certeza desse segredo que lampejava nos olhos dela e, vez por outra, parecia transparecer em seu rosto, sem que pudesse decifrá-lo. Aliás, Julia sempre fora enigmática, silenciosa, embora nunca tenha sido tímida. E disso Mauro lembrava muito bem... Essa mulher esconde um segredo, pensava e remoia.
E remoeu durante anos, enquanto se arrastava o tempo, e os filhos cresciam, e as árvores repetiam seus ciclos frutosos, e os gatos davam cria. E remoeu isso de dia, na Mercearia, enquanto atendia os clientes, e remoeu também de noite, no silêncio do quarto, quando iam dormir.
Vez por outra, insistia na velha pergunta: Quando você vai me contar? E ela apenas sorria e repetia que não tinha o que contar. E se for outro homem? Pensou durante certo tempo. Seguiu Julia durante dias, e nada. Pode ser alguém da Repartição, pensou. Obcecado pela idéia, pagou o auxiliar de limpeza para ficar de olho nela durante meses... e nada!
Um dia, quando os filhos estavam a meio caminho da adolescência, Julia adoeceu repentinamente. Mauro pareceu esquecer o segredo e se concentrou em manter Julia viva. Levou-a para a capital. Consultou especialistas e mais especialistas. O diagnóstico era sempre o mesmo: A tal doença no coração era degenerativa e Julia teria apenas alguns meses de vida.
Sem mais o que fazer, a não ser os procedimentos paliativos, Mauro voltou a pensar no segredo de Julia; esse que continuava a borbulhar nos olhos seus olhos, agora mais silenciosos, concentrados sabe-se lá em que! Então começou a ficar desesperado diante da possibilidade de que ela partisse sem falar a respeito. Afinal, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença”, incluí a lealdade, a verdade, a entrega dos segredos, apelava Mauro.
Nos últimos dias de vida de Júlia, Mauro tornou-se cruel e praticamente não falava com ela, magoado. Abriu suas caixas, leu papeis amarelados, vasculhou todas as gavetas, e bolsos de roupas antigas e guardadas. Os parentes foram submetidos a interrogatórios sobre sua vida pregressa, numa tentativa desesperada por qualquer pista que revelasse a secreta coisa se escondia por trás dos olhos negros de Julia.
Ela enfrentou o marido e a doença, impassível! Sempre reafirmou que não havia segredo, pois apenas vivia e apenas via; e conforme o dia, era feliz ou infeliz, alegre ou triste. A vida era a vida e a morte seria a morte, nada havia para temer. Nada jamais temera. E era só. Sabia que o sol nasceria de manhã e se poria à tarde e que a mangueira daria frutos em janeiro. Tudo muito simples! Dizia a Mauro que sossegasse, que deixasse de histórias, e isso era a única verdade, conforme Julia.
Julia morreu um dia depois dessa conversa com Mauro, sentada na cadeira de balanço, embaixo da frondosa mangueira no quintal de casa, num fim de tarde, um pouco antes da safra das mangas. Mauro jamais acreditou que não havia um segredo. Dois anos depois casou novamente. A nova mulher, dona da lanchonete em frente à Mercearia Fontes, falava muito! Brigavam quase todo dia, a propósito de quase tudo. Mauro sentia-se levemente confortável. Essa mulher, diferente de Júlia, não tinha aquele jeito misterioso, nenhuma luz estranha nos olhos, nem escondia segredo algum.