sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Os Beijos de Dôra

(Texto de Clauder Arcanjo)

Quando a conheci, ganhei dela um beijo. Não um beijo qualquer, mas sim um beijo de Dôra. Caliente, como, desde aquele dia, o defini. Um inesquecível beijo da paraibana Dôra Limeira.

Minha querida amiga. Semana passada, recebi o seu novo livro: O beijo de Deus, mini contos, editora Manufatura, João Pessoa, PB. Sua “terceira investida na área literária”. Na epigrafe, espécie de aviso aos incautos: “Os vergões da ferida são a purificação dos maus, como também as pancadas que penetram até o mais íntimo do ventre. (Livro dos Provérbios, 20:30)”

Nascida em Cruz das Armas, bairro de João Pessoa, professora aposentada, hoje em abraços com a alma da literatura, Dôra é uma contista singular. Suas palavras trazem-nos o sumo da dor, prosa poética reacendendo a perfume do sofrimento. Minis que machucam e encantam, pois Dora é arquiteta do abandono. Sua inteligência sempre esteve a serviço dos desvalidos, fazendo-lhes preces, narrando-lhes, a um só tempo, os seus raros prazeres.

Escritora madura que estreou de forma zelosa e contundente, Dôra, membro do Clube do Conto da Paraíba, começou a escrever no caleidoscópico mundo da internet. Participante de listas literárias, quando menos percebeu, dispunha de material de qualidade para expor e preservar, na feição de livro. Era o ano de 2003. uma estréia com um raro e, no seu caso, feliz amálgama de contos e crônicas. Arquitetura de um abandono vinha, então, a lume. Dois anos depois, 2005, o ferro em brasa das narrativas de Preces e orgasmos dos desvalidos.

Nesse O Beijo de Deus, dividido em três partes – Cotidianos, Agonizantes e Espasmos – Dôra lima o aço da palavra e cutuca fundo, bem fundo, os desvãos da sofrida existência. São seres marcados pelo sinal da exclusão e da morte. Uns mortos-vivos banhados pela vontade de viver. E isso é o que seduz em sua narrativa.

Não espere, leitor, um ósculo em piedade. No maximo, há nesses beijos laivos de solidariedade. “A surpresa veio-me da descoberta de que a literatura de Dôra Limeira pode ser inscrita numa longa tradição de literatura mística”, avisa-nos Maria Valéria Rezende na apresentação da obra, a que deu o título de “O sono de Deus”. Imersa no Jordão dos excluídos, há marcas de sangue em suas histórias. Sangrando em pedaços, parece que alguma coisa foi morta dentro dela. Com rematada violência, Dôra anuncia em “Cadeias nacionais”: “A fome desfraldava, colorida, a céu aberto, sem ordem.”

Na segunda parte, Agonizantes, em “Versos perecíveis”, ela declara: “Meu caderno de rascunho incolor não tem viço. É rascunho de muitas coisas, utopias variadas. Destroços da vida, meus textos são perecíveis linhas.”

Quem sangra com aquilo que rabisca deixa um gosto incomum nas letras postas na bandeja do leitor. No seu “Crepúsculo interior, um castiçal estende os braços metálicos para o alto, como se estivessem rezando. As velas se derretem de dor, vertem lágrimas mornas de cera. “em cada canto, uma gota de mágoa”.

O estilo de Dôra encerra o travo vivo da agonia. “Em meio ao clamor solitário, dedilhou a lira de seu espasmo”. E não se escondeu dentro de si. Ao contrário, ela, cada vez mais, desnuda-se, rasga as vestes do cotidiano e entrega-se placidamente ao que a oprime, que garroteia o espírito sangrado. Em meio aos infortúnios da vida, Cânticos de danação. Das sombras do seu eu agônico, abandonada, desvalida, Dôra se agiganta. Em sonata de profundeza, suas credenciais. “Que águas movediças são tuas lágrimas, que lamas pantanosas são tuas secreções, tua mente é poço profundo. Não sei que perigos me atraem e me fazem adentrar caminhos assim tão desconhecidos”. “Carcomidas pelo tempo, estão minhas concepções de Deus, todas transformadas em pó”.

Os beijos de Dôra – minicontos de prosa e poesia, o esperam. Um beijo ruborizado de Deus, pois, enquanto estamos vivos, parafraseando Dôra Limeira, todos se apressam em providenciar nossos funerais.

Clauder Arcanjo
clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno de Expressão, espaço Questao de Prosa, edição de 13 de janeiro de 2008.

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